São Paulo, sexta-feira, 10 de novembro de 1995
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Pastor merece estátua em praça pública

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Já escrevi sobre a Igreja Universal do Reino de Deus e sua disputa com a Igreja Católica. Foi antes do caso do "bispo que chutou a santa", o pastor on Helder; o assunto, na época, era a minissérie da Globo, e meu artigo desagradou muita gente. Eu dizia que não há maiores diferenças entre a religião católica e o teleprotestantismo em voga atualmente.
Corro o risco de desagradar de novo, mas o leitor, de qualquer modo, já está avisado de minhas opiniões sobre o assunto.
Não tenho nenhuma simpatia pelo bispo Von Helder, assim como não tenho nenhuma simpatia pelo papa João Paulo 2º. Mas o grau das indignações, dos protestos, diante do que Von Helder fez me parecer exageradíssimo. Querem processá-lo judicialmente, com base em acusações cada vez mais fortes. Querem botá-lo na cadeia por que "chutou a santa".
Vamos com calma. Quem assistiu ao vídeo do programa de von Helder sabe que ele não "chutou" ninguém, tocou, com os pés, a imagem de Nossa Senhora, com desprezo, certamente, mas não com a violência de um fanático. Sua argumentação, enquanto fazia o gesto, não era incorreta; tem pelo menos uma forte tradição teológica atrás de si. Von Helder dizia que aquilo era apenas uma imagem, um ídolo de cerâmica, e não uma "santa" de verdade. Um fetiche, uma estatueta.
Como todo debate teológico, os argumentos logo cederam espaço à loucura. Os católicos acham que von Helder chutou uma santa, porque acreditam que aquela imagem representa de fato, de alguma forma, a santa. Mas Von Helder estava precisamente "chutando", ou melhor, tocando com o pé, uma figura, uma imagem que ele não considera que "seja" a santa. Ele estava chutando um ídolo de barro, e dentro de seu código de convicções não há pecado nenhum nisso. Mas para quem vive dentro de outro código de convicções, o que ele estava chutando era "a santa" -como se seu gesto fosse expressão de um ódio real a Nossa Senhora. E ele estava precisamente querendo distinguir entre a imagem de barro e a Nossa Senhora "real", seja lá qual for a opinião que tenha a respeito dela.
O debate fica completamente obscurecido, então, porque cada lado reage dentro da fortaleza da própria convicção religiosa.
O que o Estado, leigo, separado da Igreja, tem a dizer sobre isso? Considera-se crime o desrespeito a símbolos religiosos em geral, e pior que isso, quer-se enquadrar Von Helder no caso de incitamento à guerra religiosa. Devagar com o andor, que a santa (ops) é de barro.
Von Helder não estava incitando ninguém a sair por aí destruindo templos católicos. Os pastores da Igreja Universal combatem diariamente o candomblé e a umbanda em seus programas de televisão. Trata-se de "desrespeito" à religião alheia? Certamente. mas não é obrigação de quem tem a fé X de respeitar a fé Y. Sua obrigação, ou pelo menos, aquilo que se deve fazer do ponto de vista das leis civis, é não sair por aí dando tiros ou apedrejando quem tem uma religião diferente. Fora disso, tudo é debate de opiniões, é confronto entre crenças, e posso perfeitamente acreditar que Von Helder é um enviado de Satanás, assim como ele acredita que um pai-de-santo é servidor de Belzebu.
Que ridículo tudo isso. Outro dia vi um programa dos pastores da Record, em que se defendiam argumentos de uma fragilidade comovente.
Tudo bem, diziam, já punimos o bispo Von Helder. Ele estava errado. Mas... e aí a voz do pastor ganha uma agudeza típica da falsa indignação, típica da TV Record: "Mas e a Globo? Não puseram, na minissérie, uma calcinha sobre a Biiiíblia?" Eles gostam de carregar nos is, essas letras que são os alfinetes do alfabeto, crivos sonoros a espetar a consciência e o bolso do homem crédulo. Que mal há em mostrar uma calcinha sobre a Bíblia, quando o que a minissérie pretendia provar é que o pastor vivido por Edson Celulari era um falso religioso, um oportunista, um pulha? Foi ele, e sua amante, quem deixou a calcinha preta cair sobre as páginas do livro santo. Na minissérie, procurava-se justamente mostrar o "desrespeito" à palavra de Deus; de modo que, mesmo na mente do satânico doutor Roberto Marinho, a Bíblia é mesmo um objeto divino, que só vilões como Edson Celulari seriam capazes de conspurcar. Mas a tolice de todo o episódio teve efeito contraditórios, repulsivos alguns, edificantes outros.
Começo pelos repulsivos. Criou-se, depois de Von Helder, uma espécie de bajulação a Nossa Senhora da Aparecida. A marcha, ou passeata, ou seja lá que nome tenha, dos militantes pró-Zumbi não achou nada melhor, neste terceiro centenário do mártir, do que "dar uma passada" em Aparecida. Fica no ar o mito da Nossa Senhora "negra", mas é também um acinte às religiões africanas, só que estas tem o mérito de não serem exclusivistas, de se adaptarem aos dogmas de seus exploradores, grande lição de tolerância e de sincretismo, aliás, que faz do Brasil um país simpático. Mas quanto oportunismo nessa peregrinação esquerdóide a Aparecida!
O que dizer então dos "atos de desagravo" diante de algumas sedes da Igreja Universal? Quem, aí, está incitando ao conflito? Uma menção especial, neste capítulo das repulsas, merece ser feita à "Confraria do Garoto", um grupo de boêmios cariocas que usa chapéu coco e que sempre aparece nas ocasiões em que o clichê, a idiotice, a unanimidade, estão a necessitar de um toque especial de patetismo ocioso. Passemos aos aspectos edificantes do episódio. Von Helder foi punido. Pela primeira vez, a Igreja Universal se viu forçada a dar explicações à opinião pública. O cinismo de todos os seus bispos e pastores teve de ser substituído por uma espécie de rigor interno; pela primeira vez, acho, uma discussão teológica, erudita, com antecedentes na História, foi levada adiante. O fato, o escândalo -assim como a minissérie da Globo- exigiu dos pastores da Record um rigor intelectual maior do que o de hábito; os argumentos foram infames, como já disse, mas de qualquer modo, em meio à polêmica, eles tiveram de ser menos Silvio Santos e mais Lutero. E a Igreja Católica, por sua vez, foi agraciada com uma ocasião para renovar seus tristes, anêmicos fiéis. A coisa ganhou uma seriedade, deixou de ficar tão rotineira como sempre são os ritos, as missas, as palavras dos padres católicos. De repente, tudo se cercou de certa gravidade religiosa.
Criaram-se mártires e perseguidos de lado a lado. Não deixa de ser bonito, e não acho especialmente preocupante, uma vez que nenhum dos lados está disposto a ver sangue correr pela causa que defende. Já que há farsantes de um lado e de outro, fico feliz em vê-los mais convictos, mais sérios, do que há alguns meses.
Von Helder merece, então, uma estátua em praça pública, a ser chutada, certamente, mas sua atitude teve pelo menos o efeito de tornar menos farsante, e mais sincera, a religião de cada um. Claro que temo pela sinceridade das religiões: por pureza convicta, as pessoas se matam. Mas ninguém vai se matar, espero. O episódio é purificador. mas condenar judicialmente Von Helder, isso sim será um ato inquisitorial, um ato de obscurantismo. Espanto-me com a estupidez geral, com o oportunismo geral, com o desapreço de todos à verdade. Por espírito de tolerância, digo apenas que não quero ver Von Helder na cadeia. Quanto ao resto, calo-me; já falei demais.

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