São Paulo, sábado, 11 de novembro de 1995
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A falência de São Paulo

RUBENS RICUPERO

Como se pode entender que a região mais desenvolvida do Brasil esteja à beira da falência e não tenha quase recursos para investir?
O que está acontecendo em São Paulo parece, à primeira vista, desmentir tudo o que acreditávamos e esperávamos em matéria de desenvolvimento.
Quando eu era jovem, em meados dos anos 50, lembro-me de como Juscelino, o maior vendedor de idéias de nossa história, convenceu-nos de que o desenvolvimento era o remédio infalível para todos os males que nos afligiam.
Em cinco anos cresceríamos 50. A indústria automobilística e a mecânica pesada se implantariam em São Paulo. A riqueza material geraria a prosperidade social e criaria as condições para a vida universitária e cultural de mais alta qualidade do país.
O corolário inevitável é que, em pouco tempo, o resto viria como acréscimo: competência técnica da administração financeira, eficiência dos governos estadual e municipal como reflexo natural e subproduto de uma sociedade industrializada, rica e educada.
Quase tudo se realizou nessa profecia, menos a última parte. Em lugar de governos cada vez mais sólidos, responsáveis e competentes, assistimos a uma deterioração crescente, a um apodrecimento da vida pública que culminou no paradoxo atual: o Estado mais próspero e culto da Federação tem sido um dos piores no desempenho administrativo e financeiro, enquanto unidades mais modestas, como o Espírito Santo, ou muito mais problemáticas, como o Ceará, nos dão lições em capacidade de se regenerar e se administrar eficazmente.
Como explicar que o governo estadual tenha herdado uma dívida acumulada de US$ 58 bilhões, maior do que a de muitos países soberanos obrigados a gastar fortunas em defesa e diplomacia?
Qual a sucessão de desatinos que teria levado ao estouro do Banespa, uma das quebras bancárias mais gigantescas da história mundial dos escândalos financeiros deste século?
De que forma explicar que uma Secretaria de Educação com cerca de 300 mil funcionários não consiga garantir um ensino público de qualidade aceitável?
É, de fato, para quase desesperar que, após tanto sacrifício e tanto crescimento material, nos encontremos em alguns aspectos em situação pior do que a de 40 anos atrás.
Seguimos, nesse particular, um caminho em sentido contrário ao da maioria das sociedades que passaram, nos últimos dois séculos, pelas profundas transformações do desenvolvimento.
A vida diária nas grandes metrópoles européias de muitos milhões de habitantes, como Londres, Paris ou Berlim, pode ser competitiva e difícil, mas nada nelas se parece com o padrão desastroso de administração que nos caracteriza.
A fim de encontrar algo comparável a esse descalabro, temos de recorrer às monstruosas megacidades do Terceiro Mundo. Em matéria de falência financeira, alguns paralelos podem ser traçados com o colapso da cidade de Nova York, há alguns anos.
Será o crescimento caótico, desordenado e excessivamente veloz que leva a essa espécie de expansão cancerosa, em contraste com o aumento mais gradual e orgânico das cidades e regiões européias?
Meu saudoso professor de geografia no Rio, Fábio Macedo Soares Guimarães, costumava dizer que nós, brasileiros, tínhamos sido sempre incapazes de administrar qualquer cidade que ultrapassasse os 500 mil habitantes.
Será apenas uma fase histórica e passageira, como as experimentadas 150 anos atrás pela Londres de Charles Dickens e a Paris dos "Miseráveis" de Victor Hugo?
A razão principal estará num inchamento material sem real distribuição e promoção humana, um crescimento marginalizador e desequilibrado?
Ou a causa maior deve ser buscada no abastardamento da política e da governança por meio do populismo, doença infantil dos primeiros estágios da democracia de massas?
A fim de procurar respostas para essas e outras perguntas, o Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial estará realizando uma conferência internacional, de 27 a 29 de novembro, sob o título "Restaurando as instituições públicas do Estado de São Paulo".
Como se vê pelo título, o enfoque será construtivo e não catastrófico. Participarão alguns dos estudiosos estrangeiros líderes nos estudos dos problemas financeiros das grandes concentrações urbanas. Falarão, entre outros, Martin Mayer, um dos maiores especialistas em temas financeiros, autor de "The Bankers"; Raymond D. Horton, professor da Universidade de Columbia, presidente do "Citizens Budget Commission" de Nova York, autor de "Power Failure: New York City Politics and Policy since 1960"; Richard Ravitch, ex-presidente da Comissão de Reunião da Constituição de Nova York; Andrew Foster, "controller of audit" (uma espécie de tribunal de contas) da Comissão dos Governos Locais da Grã-Bretanha; Tarun Dutt, um dos responsáveis pela regeneração de Calcutá; Takao Fukuchi, especialista em economia regional da Universidade de Nagoya, no Japão.
Do lado brasileiro, de que participarei, esperamos contar com a contribuição de pessoas que tenham tido ou estejam tendo a experiência concreta de administrar cidades e Estados complexos como São Paulo.
Não há nenhuma intenção de tomar partido nas disputas locais de poder ou de fazer política. Só nos move a intenção de promover um debate alto, que vá além das explicações simplistas ("a infelicidade de maus governos", "a desonestidade dos políticos") ou sectárias.
Para fazer um trabalho sério, primeiro nos concentraremos no tema da responsabilidade fiscal e orçamentária. Após a conferência, haverá uma série de seminários menores sobre segurança, educação, saúde pública, empresas estatais, Banespa, reforma tributária.
O esforço terá valido a pena se, no fim do processo, formos capazes de entender melhor o que nos está sucedendo e se soubermos dar respostas à pergunta que se fez Lênin e se fazem todos os que se recusam a aceitar a desordem no mundo: "O que fazer?".

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