São Paulo, sábado, 11 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Viúvas da desvalorização cambial?

LEONARDO FERNANDO CRUZ BASSO

O professor Gustavo Franco publicou um artigo na Folha ("As viúvas da inflação", 24/09/95) que contém uma afirmação desconcertante:
"É porque os fundamentos do mercado mudaram drasticamente de uns anos para cá que é tolice falar em defasagem cambial.
"Defasagem com relação a quê, se o passado não serve mais como referência?
A primeira vista, pareceria que não se pode questionar essa assertiva. Afinal, o conceito de desvalorização cambial real está sempre associado à multiplicação da taxa de câmbio nominal por dois índices de preços que indicam crescimento em relação a uma base. Muda-se a base e o que era defasagem pode até virar valorização cambial.
Sempre fui fascinado por esse problema. Não haveria uma alternativa para esse dilema, uma comparação em um ponto do tempo (ou mesmo uma tendência ao longo de vários pontos do tempo) que indicasse que nossa taxa de câmbio está no nível errado?
Errado não no sentido de incorreto, mas no de nos apontar algo que precisa ser olhado com mais atenção, pois os custos de manter tal taxa de câmbio podem ser altos se implicarem a eliminação de vários setores da economia brasileira.
Como economista, sempre olhei Marx com ambiguidade. Por um lado, com o respeito que se devota a um dos maiores economistas de todos os tempos. Por outro lado, com a angústia provocada pelas barbaridades que se cometem em nome de ideologias ou pensadores hegemônicos, e Marx seguramente o é entre os de esquerda.
Inquietudes à parte, para a questão do nível das taxas de câmbio os economistas clássicos têm uma resposta que, julgo, elimina a relatividade dos índices dos preços ("le monde exchanté, na feliz acepção de Alain Lipietz).
Essa visão clássica teve suas origens em Hildefing, que procurava uma escapatória para conceituar o valor da moeda fora da teoria marxista ortodoxa (que insistia na moeda-mercadoria) sem abandonar a teoria do valor trabalho.
Os preços atribuídos aos objetos produzidos (o mundo encantado que esconde a produção do excedente) nada mais são do que a expressão do trabalho, obtida pela divisão do PIB pelas horas utilizadas para produzi-lo.
Imaginemos um mundo sem inflação e dois países com a mesma moeda e com a mesma relação PIB/horas trabalhadas. Se isso é verdade, a "produtividade" média nos dois países é a mesma. Essa relação escapa às dificuldades de trabalhar com produtividades físicas. Para países com produtividades semelhantes, o valor da moeda é semelhante e também pode ser a taxa de câmbio.
Mas se, por qualquer motivo, as produtividades variassem bastante, o país com maior produtividade, se conseguisse impor preços menores (com a mesma taxa de câmbio), poderia eliminar setores não-competitivos de outro país.
Por essa razão, é prudente começar a troca de moeda de um país com uma relação que equilibre a razão de produtividades -ou seja, se a produtividade americana é duas vezes maior que a brasileira, a taxa de câmbio de reais por dólares deve ser de dois para um.
Note-se que esta argumentação é extremamente poderosa, porque dá uma resposta para a determinação do nível inicial da taxa de câmbio mesmo quando se esquece a memória dos preços passados (o que ocorre com a troca de moeda de uma economia). Eliminamos os preços passados, mas não eliminamos a estrutura produtiva da economia.
Pode-se concordar com a estratégia de curto prazo do governo, que aprendeu com os planos de estabilização anteriores que o congelamento de preços aumenta a renda real dos assalariados e estes, por não acreditarem na permanência da situação de estabilidade duradoura dos preços, correm para o consumo, pressionando a capacidade produtiva da economia.
Nada mais correto, portanto, do que suprir o excesso de demanda com bens produzidos no exterior. Mas isso não deve levar a uma situação na qual necessitamos sempre do capital especulativo para fechar o balanço de pagamentos, à custa de juros que quebrem o Tesouro e os governos estaduais.
Que o valor da moeda conforme visualizado por Hildefing possa ser considerado como uma alternativa para estudos sobre a determinação da taxa de câmbio; não como verdade absoluta, mas como variável a ser considerada no debate. E é com base no valor da moeda que afirmamos que a "choradeira" pela valorização cambial não deve ser confundida com a choradeira das viúvas da inflação.
Não devemos dar ouvidos aos choramingos das viúvas da inflação. Para os setores que se locupletaram com a política protecionista das últimas décadas, temos uma resposta: competição neles!!!
Mas as ponderações (ou seria melhor dizer angústias) dos que sentem na carne a valorização real do Real devem ser levadas em consideração.
Se o governo não quiser optar por uma desvalorização do Real, que pelo menos elabore uma política de incentivo às exportações e uma política industrial que contemple a reestruturação dos setores pesadamente afetados pela competição externa.

Texto Anterior: A falência de São Paulo
Próximo Texto: Clinton vetará lei sobre dívida
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.