São Paulo, sábado, 11 de novembro de 1995
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Suicídio dizima os povos da mata e do gelo

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Por que será que o suicídio nos espanta tanto? Não precisamos de provérbio nenhum que nos lembre que a morte é rigorosamente inevitável. Assim, o ato do suicídio corresponde a, digamos, a antecipação de uma viagem. Toma-se a decisão de partir antes e pronto.
No entanto, nosso primeiro impulso diante de uma notícia de suicídio é arregalar os olhos. Mesmo que jamais tenhamos tido qualquer ligação com o suicida, ou só o conhecêssemos de vista, ou de alguma leitura vaga, como eu conhecia, por exemplo, Gilles Deleuze. Matou-se, o Deleuze, vejam só. E nos vem a insopitável curiosidade de saber por que.
A Igreja, que outrora encarava o suicida como um rebelde, que recusava o dom da vida e que, segundo Dante, ia parar no sétimo círculo do inferno, aos poucos foi se livrando da má vontade. Os suicidas estão sendo sacramentados como quaisquer outros defuntos e normalmente enterrados em campo santo. E, como vemos pela mídia em todas as suas formas, a idéia da eutanásia, essa então ganha aceitação crescente no mundo inteiro.
Acho que se poderia tirar uma conclusão positiva dessa nova naturalidade que vamos adotando diante da suspensão voluntária da própria vida, quando ela começa a nos encher demasiadamente a paciência. Afinal de contas, cada um sabe onde lhe aperta o sapato, isto é, até que ponto considera razoável aguentar a dor de uma doença incurável ou de uma situação moral ou psíquica insuportável. Por que, nesses casos extremos, não antecipar a travessia?
Só desconfio -o que muito me inquieta- é que essa nova atitude esteja começando a criar entre nós o voluntarismo do suicídio, a tentação do auto-extermínio induzido por causas exteriores.
Penso no suicídio étnico, na vontade de morrer que ataca populações primitivas. É um tipo de autodestruição que não tem nada de pessoal e de verdadeiramente interior. Nada ligado ao que chamamos azar, destino cego. Há no mundo de hoje um número cada vez maior de pessoas, muito comumente crianças, que se suicidam por nada, ou, digamos assim, por não verem nada que as estimule a permanecer vivas. Passam a se considerar redundantes. Vão sendo, sistematicamente, convencidas de que não há mais lugar para elas no mundo.
Estou pensando aqui sobretudo no suicídio entre os índios brasileiros e especialmente num artigo que acabo de ler de Antonio Brand, professor de História e de Antropologia no Rio Grande do Sul, publicado em "Porantim", o jornal do Conselho Indigenista Missionário.
O artigo se intitula "Os suicídios entre os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul" e mostra como, sem que haja qualquer tradição suicida entre nossos silvícolas, os guarani se matam agora em número cada vez maior, por falta de terra do seu espaço e seu jeito de vida, dos seus deuses locais.
À medida que à espera de demarcação, as terras indígenas vão virando sítios e em seguida fazendas de brancos, os índios, no que perdem seu espaço, descobrem aquela doença que intelectuais chamam de "angst" mas que dá em índio também.
A história dos guarani na região de Grande Dourados é, tal como narrada no estudo de Brand, aterradora. Começa em 1882, quando o governo federal arrenda "a região para Tomás Laranjeiras, que inicia a exploração da erva-mate.(...) Até 1928 são reservados aos guarani na dita região oito áreas específicas, somando 18.297 hectares". No entanto, "com o desmatamento sistemático da região, dezenas de aldeias guarani foram tomadas pelos fazendeiros que chegavam".
Apesar de vagos protestos do antigo Serviço de Proteção aos Índios e depois da Funai, os guarani simplesmente começaram a sobrar. Perdida a terra, optaram por perder o mundo. Começaram os suicídios. Tanto chamaram a atenção que surgiram as estranhas estatísticas dos que se enforcavam e envenenavam. E esse novo tipo de morte está em contínua ascensão. Em 1986, cinco índios se mataram. Pois neste ano de 1995, só até julho, já se registraram 32 casos de suicídio.
Mas consolem-se os brasileiros. Essa furiosa autodestruição étnica ocorre também em países mais adiantados. Na região canadense esquimó de Davis Inlet, verificou-se ano passado, com assombro, que 25% da comunidade se suicidara por haver perdido sua terra original.
Em 1967 o governo canadense convencera os esquimós Mushuan Innu a trocarem sua terra no Labrador pela tal ilha de Davis Inlet. E aos esquimós, que foram então forçados a abandonar sua caça e seu modo antigo e tradicional de viver, o governo deu até televisão a cabo e os carros modernos das zonas geladas, automóveis denominados nevemóveis.
No entanto, tal como os guarani do Mato Grosso, surgiu entre esses "índios" do gelo a mesma angústia criada pela imposição de uma vida que não dá mais frutos por terem sido arrancadas suas raízes com a rotina, o passado.
A triste verdade que parece marcar nosso fim de ano, de século, de milênio, é que, enquanto vamos descobrindo mundos novos na pesquisa espacial, vamos também submetendo os que moram nas partes mais antigas deste cansado planeta a férreas e brutais pressões em nome de cada vez mais espaços, mais terra para os fortes e poderosos. Continuamos, como os nazistas, em busca de cada vez mais "Lebensraum", mais espaço vital.
Flávio Rangel
Mas não vou permitir que este artigo acabe lúgubre, e como uma espécie de aceitação do suicídio. Suicídio é o incomum, é a solução dos apressados. Ele nos leva a trair o instinto mais forte que domina o homem e todas as espécies animais: o instinto de conservação.
Uma vez nascido, todo bicho se agarra à decisão de defender com unhas e dentes a vida que recebeu. Essa é a regra que nos orienta e que admiramos mais que qualquer outra. Como a admirei em Flávio Rangel, o querido e belo amigo que para nós criou tanta graça e alegria nos palcos brasileiros, e que morreu de um câncer de pulmão dia 25 de outubro de 1988.
Está finalmente saindo sobre Flávio Rangel um livro que já fazia falta. Chama-se "Viver de Teatro", é da autoria de José Rubens Siqueira e será lançado dia 20 de novembro em São Paulo e dia 27 no Rio.
Quando descobriu em si mesmo o inimigo mortal, Flávio passou a lutar bravamente pela vida. Aliás, ao ter a notícia da morte provavelmente próxima, Flávio recebeu de Darcy Ribeiro, que até hoje luta contra o câncer com uma quase insolência, um bilhete de guerreiro para guerreiro: "Flávio, meu irmão, câncer a gente vence é com vontade de viver e fé, amigo, fé nas forças do corpo". Flávio aceitou prontamente o conselho. Morreu lutando pela vida e é este, o da luta, que merece ser o modo de morrer desejado por todos.

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