São Paulo, sábado, 11 de novembro de 1995
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Conferência discute a razão feminina

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A psicanalista Maria Rita Kehl soube evitar a cilada feminista e as facilidades do jargão psicanalítico para responder à questão "Existe uma Razão Feminina?", tema de sua conferência anteontem dentro do ciclo "A Crise da Razão", promovido pela Funarte no Rio e em São Paulo.
Numa palestra ao mesmo tempo erudita e muito clara, Maria Rita mobilizou filósofos, tratou o tema em perspectiva histórica e usou aquela que é talvez a pesonagem feminina mais conhecida da literatura, Emma Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880), para mostrar que ela constitui um paradigma dos impasses da razão feminina em sua tentativa patética de se adaptar à razão burguesa.
O ponto de partida de Kehl foi a Revolução Francesa, nossa certidão de nascimento. No bojo de suas vocações libertárias, surgem também as reinvidicações de uma mulher que começa a recusar suas atribuições maternas, que passa a ver a amamentação como um hábito inferior, animalesco, incompatível com suas aspirações à igualdade de condições e seu desejo de inserção na cena pública.
Essa mulher que desafia o "mito do amor materno", diz Kehl, iria ser "sufocada" logo a seguir, no século 19, mas reaparece hoje, na cultura pós-feminista e narcisista, quando a maternidade passa a ser vinculada à "deformação do corpo, ao atraso da carreira profissional", constituindo um obstáculo à ascensão social e pessoal.
Essa forma contemporânea de depressão pós-parto, diz Maria Rita, não tem nada a ver com aquela descrita por Freud, quando afirmava que o nascimento do bebê significa uma ruptura na relação de simbiose e sensação de plenitude vividas durante a gravidez.
Mas nada disso existia por volta de 1800, quando o contra-discurso da restauração na França extingue todo o fervor revolucionário aberto em 1789 e, por extensão, joga um balde de água fria em cada uma das conquistas feministas.
A ordem burguesa nascente começa a dizer a que veio de fato. A mulher é "devolvida" para seu espaço "natural" -o lar- e deve recuperar seus atributos "essenciais" -a docilidade, a fantasia, a fragilidade, a capacidade ilimitada de doação, entrega ao marido etc.
Rousseau, como sempre um precursor da era moderna, também aqui se antecipa. Em seu "Emílio", escreve que a "a mulher é feita especialmente para agradar ao homem (...). Se a mulher é feita para agradar e ser subjugada, ela deve tornar-se agradável ao homem ao invés de provocá-lo. Sua violência está nos seus encantos".
Mas é com "Madame Bovary" que a tensão entre a feminilidade e a razão burguesa iria explodir. Maria Rita sugere que Emma é o "espelho fantasioso das aspirações do homem burguês, reflete as suas aspirações mas não tem os meios de realizá-las".
Emma é, neste sentido, o equivalente feminino de "D. Quixote", de Cervantes. Assim como este queria reeditar em sua biografia as histórias de cavalaria que inspiravam seu delírio errante, Emma quer viver na própria pele todas as aventuras que conheceu lendo os romances folhetinescos.
O "erro", nos dois casos, foi ter ambicionado coisas demais, o que resulta numa confusão entre realidade e fantasia. Nas palavras de Flaubert, "Emma se torna uma heroína dos romances que leu".
O desfecho trágico da personagem -que se suicida- é, ainda hoje, segundo Maria Rita, o emblema dos dilemas da mulher quando começa a se desaver com a própria feminilidade.
Temos a sensação de que, apesar de todo falatório feminista, de todas as conquistas e retrocessos, o problema da mulher parece estar todo ali, naquelas 400 páginas definitivas de Flaubert.

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