São Paulo, sábado, 11 de novembro de 1995
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O tempo e o número

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - O diretor de um dos institutos de pesquisa garantiu pela TV que nove entre dez brasileiros estariam assistindo, semana passada, ao último capítulo de uma das novelas das 20h. Feitas as contas, teríamos a fabulosa audiência de aproximadamente 128 milhões de pessoas amarradíssimas em saber quem havia matado quem.
Posso estar errando por pouco, mas acredito que Shakespeare, incluindo suas apresentações pessoais desde os tempos elisabetanos, suas inumeráveis reapresentações em várias línguas ao longo de mais de quatro séculos, as incontáveis edições e reedições de suas peças, as versões que recebeu no cinema, na TV e no rádio, não teve ainda tamanha e tão fantástica assistência.
A humanidade era bem menor, menores eram os teatros, as edições em livro e, por conseguinte, o consumo global de sua obra. Não entro no mérito do texto daquele que é considerado o maior autor teatral da humanidade, tampouco menosprezo a teledramaturgia que hoje produzimos e consumimos.
Minha reflexão não é sobre a qualidade nem sobre a quantidade. É sobre o tempo. Evidente que a possibilidade de uma telenovela, por melhor e bem sucedida que seja, atravessar um século ou ao menos uma década é bastante remota. De uma forma geral, sabemos hoje quem foram Romeu e Julieta, quem foram Hamlet e Macbeth, Otelo e Iago, Desdêmona e Lear.
Apesar de bem mais recentes, bem poucos saberão quem foi Albertinho Limonta e mamãe Dolores, Odete Roitman e Juma. Pulando de gênero, anos atrás, um musical da Broadway, "Chorus Line", foi considerado um ponto de não-retorno do espetáculo teatral. Quando foi lançado um livro intitulado "O Desafio Americano", li uma estatística que levantava a hipótese de termos um best seller maior do que a Bíblia.
Daí minha reflexão sobre o número e o tempo. Um autor deve ter como público-alvo a quantidade ou a perenidade? Ambos são consoladores. Virgínia Wolf achava que não seria compreendida por mais de 3.000 pessoas distribuídas ao longo de um século. Stendhal jurou que só seria entendido cem anos depois de sua morte. O tempo, para eles, era o consumidor ideal e consagrador.

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