São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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Agricultura, reforma agrária e ideologia

ROBERTO CAMPOS

"Foi então pela primeira vez promulgada a lei agrária, que desde aquela época até hoje nunca mais foi discutida sem provocar as mais violentas comoções."
(Tito Lívio, sobre a primeira lei agrária do Cassio, 486 a.C.)

A confusão recente em torno das ocupações de terras, dos movimentos políticos e dos desafios à ordem jurídica interessa-me particularmente, porque foi sob minha responsabilidade que se elaborou, no governo Castello Branco, o Estatuto da Terra, documento ao qual geralmente se reconhece um caráter moderno e inovador. Se houvesse sido adequadamente cumprido, com toda a probabilidade teria reduzido a um insignificante resíduo os problemas (reais alguns, imaginários outros) que ora esquentam o debate público.
Muitos leitores se sentem perplexos com invasões organizadas como operações de guerra, e tamanha complicação para assentar em algum lugar alguns lavradores, num país com tanta terra. Mas vamos por partes. O que há, na verdade, não é "uma "questão agrária, mas uma série de questões que se desdobram a partir de pelo menos quatro vetores principais. Vejamos:
1) Há uma questão econômica, a da agricultura, que tem de alimentar e prover de matérias-primas uma população urbana que já está próxima dos 80% do total do país.
2) Há uma "questão social, que se subdivide em duas: (1) prover fatores de produção para o aproveitamento de mão-de-obra qualificada, capaz de produzir eficientemente (em geral, vítimas das sucessivas divisões, por herança, das terras da família) e gerar excedentes para o mercado, e (2) dar uma base de subsistência para agricultores nômades, posseiros e outras categorias sem qualificação especial.
Note-se, a propósito, que o "bóia-fria" resultou da demagogia do Estatuto do Trabalhador Rural, do governo João Goulart, que cerceou a gestão do fazendeiro, forçando-o, para sobreviver, a livrar-se de meleiros, arrendatários, colonos etc. -mecanismo de grande capilaridade vertical pelo qual os imigrantes europeus e japoneses de São Paulo acabaram por expelir do campo os "quatrocentões". A simples modernização desse estatuto geraria enorme absorção de mão-de-obra, da mesma forma que a eliminação do corporativismo fascista da legislação do trabalho (grande culpada pelo "custo Brasil") aumentaria muito a oferta de emprego.
3) Há uma questão ideológica, na realidade resumida a antigas palavras de ordem, importadas pelas esquerdas na fase da descolonização e da "guerra fria" entre os blocos ocidental e soviético. No auge desta, 1957-1964 -entre o Sputnik, o primeiro vôo espacial tripulado, e a queda de Khruschov-, a União Soviética parecia embalada num crescimento econômico e tecnológico fantástico. Pretendia ultrapassar os Estados Unidos até o fim do Segundo Plano Septenal (1972)!...
4) Há, por fim, questões relacionadas, por um lado, com a preservação da ordem pública e do Estado de Direito, e por outro, com as enormes deficiências práticas da regularização jurídica da propriedade rural.
O Estatuto da Terra partiu de uma análise teoricamente elaborada, mas fácil de explicar. O Brasil não possuía um "campesinato", como o que resultou na Europa (e persistiu muito tardiamente na Europa Oriental) da desintegração das relações de produção do modo feudal de produção; nem como o da Índia ou da China, representativos de outros modos de produção não estritamente "feudais"; nem como o de certas comunidades indígenas da África e da América Latina (México, por exemplo), tecnologicamente rudimentares, mas dotados de formas funcionais de solidariedade social. Não tivemos a "aldeia", com seus laços comunitários, nem grandes senhores de terras, aristocráticos ou mercantis, que viviam de extrair rendas do camponês pelo uso da terra. Apenas algumas poucas áreas do nosso vasto território (no Nordeste, por exemplo) lembrariam vagamente essa condição. Essa estrutura agrária estratificada e de baixa produtividade tenderia a desaparecer com a industrialização.
A repartição da terra era um grito revolucionário autêntico naquelas sociedades camponesas. Numa economia moderna, faria tão pouco sentido quanto a ocupação das fábricas e distribuição das ferramentas entre os trabalhadores. No Brasil (como nos Estados Unidos ou na Austrália, onde não preexistia uma sociedade agrária tradicional indígena), o problema prioritário era assegurar a base para uma política agrícola que privilegiasse o aumento da produção e a alta produtividade. Note-se, a propósito, que o Estatuto da Terra veio no momento em que se definia uma decisiva mudança estrutural na nossa agricultura. De 1920 a 1970, a produção agrícola brasileira cresceu mais ou menos linearmente, de modo extensivo, pela incorporação quantitativa de dois fatores, terra e mão-de-obra. Mas já a partir da década de 60 começava a perceber-se a intensificação de capital e tecnologia, com máquinas e insumos modernos. De 1960 a 1994, o PIB real do país passou de um índice de 100 para 510,8. A participação do setor agrícola no PIB caiu, no entanto, de 17,8% em 1960 para pouco mais de 10% em 1980, desde então oscilando em torno desta última cifra. Por outro lado, a população rural é hoje menor do que em 1990, de modo que a produtividade agrícola per capita teria um índice de quase 370 para 100 em 1960.
Essa estrutura produtiva, que hoje produz 80 milhões de toneladas de grãos (cinco vezes mais do que em 1960), não podia ser posta em risco, sob pena de comoção grave. Por outro lado, era preciso acomodar os agricultores viáveis, e dar um mínimo de condições de suficiência aos não-capacitados.
A essência do problema era, pois, completar uma "revolução capitalista" na agricultura, acabando com os restos das formações pré-capitalistas. Para isso, era preciso que o custo da terra fosse determinado pelo seu produto marginal -ou, dito menos tecnicamente, que a terra oferecesse uma rentabilidade comparável a outros ativos, ao invés de ficar ociosa em grandes propriedades, como reserva de valor. Imaginamos, então, três mecanismos básicos: (1) imposto territorial progressivo, (2) zoneamento, e (3) saneamento do registro da propriedade rural. O imposto puniria os improdutivos e os que maltratassem a terra, e com a sua arrecadação haveria recursos suficientes para assentar os pequenos agricultores qualificados, e para dar alguma terra e assistência aos não-qualificados.
O estatuto praticamente não foi implementado, por uma série de razões, que não cabe examinar aqui, entre elas a complicada conjuntura internacional dos anos 70 em diante, e as questões políticas internas. E as dificuldades práticas de uma geografia do tamanho da nossa revelaram-se piores do que o esperado.
Quanto à questão ideológica, acredito que há uma esquerda "fora do ar", despreparada, que ainda vive nos anos de ouro da "gloriosa Pátria do Socialismo". Marx, que detestava a idiotice do campo, queria a organização de brigadas agrícolas -idéia que, na versão stalineana dos "sovhoses" provocou o irreversível desastre da agricultura soviética (causando uns 14 milhões de vítimas). Mas há, também, os menos inocentes, que vêem na agitação no campo -pela ameaça à agricultura e ao abastecimento das cidades- um instrumento de intimidação para reforçar sua base política "socialista".
Assentar agricultores é relativamente fácil, desde que se contenha a invasão de terras produtivas, que é uma perversão ideológica perigosa. Mas não é barato. Fala-se em R$ 40 mil por família. E as trapalhadas usuais do governo não ajudam. Em Mato Grosso, por exemplo, quase todos os projetos oficiais fracassaram, em contraste com as colonizações privadas. Na agricultura atual, além da tecnologia e insumos industriais caros, máquinas e equipamentos pesam muito. Nos Estados Unidos (1991) a média desse item era de US$ 42 mil. Ali, 90% da mais poderosa agricultura do mundo é tocada por 650 mil estabelecimentos de alta eficiência (31% do total), com menos de 2% da força de trabalho.
Por fim, temos a questão da ordem pública. Há, certamente, confusões sobre a legitimidade dos títulos, que, em alguns lugares, formam vários "andares". E há a "grilagem". Velha tradição. E não apenas de terras. O setor público é grilado pelos "marajás" e pelos corporativistas das estatais, sob o manso olhar dos governos. É válido o Movimento dos Sem Terra ir à Justiça contestar títulos de propriedade duvidosos. E o governo deve recuperar terras abusivamente apropriadas. Caso necessário, pode desapropriar, pagando a indenização devida. Tudo dentro da lei. E sem privilegiar os fabricantes de "conflitos" -porque o "conflito" é organizado profissionalmente. Em Mato Grosso, com um padre, um advogado e dois posseiros, cria-se um conflito agrário. A condição da liberdade é o Estado de Direito, essa invenção liberal que os coletivistas detestam. Por isso, a primeira obrigação do governo é cumprir a lei.

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