São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Parem as máquinas

MARCELO LEITE

O mundo vive uma sede de mártires. Sábado da semana passada um fanático disparou três vezes contra a foto de um aperto de mão e acertou duas balas dundum no marido de Leah e avô de Noa. A notícia provocou pesar em muitos e júbilo em poucos, mas não chegou até vários leitores da Folha.
É difícil imaginar experiência mais frustrante do que abrir o jornal e não deparar com a notícia mais importante do mundo no dia anterior. Na melhor das hipóteses, a pessoa viu os telejornais e já sabe do fato; decepciona-se somente por não encontrar detalhes e análises sobre o fato. Na pior, está completamente por fora e vai se sentir enganada quando tomar conhecimento, possivelmente em uma situação constrangedora: "Como, você ainda não sabe que o Rabin foi assassinado?"
Embora raramente assista televisão, vi por acaso no sábado à noite, de passagem, menção à morte num noticiário de emissora espanhola. A meia hora seguinte foi uma experiência vívida da fragilidade desse meio. Pulava de canal em canal da TV por cabo e não conseguia descobrir a única coisa que importava: quem o matou, árabe ou judeu?
Depois de engolir uma sucessão intragável de falhas, rostos compungidos e entrevistas irrelevantes na CNN, desisti. Resolvi esperar pelo jornal do dia seguinte. Nova decepção. Melhor dizendo, meia decepção. Na porta de minha casa em Vila Madalena, bairro relativamente central de São Paulo, havia como de hábito os mais de cinco quilos dominicais de papel. Dois exemplares da Folha e um do "Estado". Manchete da Folha: "Cartel do turismo frauda licitações". Do "Estado": "Assassinado primeiro-ministro de Israel".
Desde então, 11 leitores ligaram ou escreveram ao ombudsman para protestar contra o que consideram uma falha inadmissível do jornal. Em certo sentido, têm toda razão. A veemência e a virulência de seu protesto vinham potencializadas pela leitura, já na segunda-feira, de uma carta no Painel do Leitor do habituê Hanns John Maier -de Ubatuba!- elogiando a Folha pela agilidade: "É desempenho desse tipo que manterá vivo o jornalismo impresso". Para os sem-notícia, o episódio certamente teve significado oposto. Antes porém que condenem a Folha por privilegiar ubatubanos, gostaria de contar o que aconteceu na Redação da Folha na noitinha de sábado. Com isso, ficará claro que o jornal teve desempenho mais do que razoável e que o problema maior foi o horário em que a besta Yigal Amir apertou o gatilho de sua Beretta.
Troca urgente
Muitos leitores desconhecem que a edição de domingo da Folha começa a ser impressa às 10h30 de sábado. Em outras palavras, quando muitos deles ainda nem saíram da cama. Quem ainda se revolta contra essas edições dominicais enregeladas não faz idéia do pesadelo que é imprimir 1.173.624 exemplares de um jornal com 232 páginas.
Uma rodagem tão precoce não quer dizer, porém, que a Redação fique às moscas nas tardes de sábado. Não, uma equipe permanece de plantão ao longo do dia, efetuando as atualizações que se fizerem necessárias. No jargão dos jornalistas, são conhecidas como "trocas urgentes".
Foi assim no último dia 4. Às 18h10, minutos depois de incluídos na edição os resultados de alguns jogos de futebol, foi recebido por computador o primeiro despacho de agência de notícias sobre o atentado na praça dos Reis de Israel, em Tel Aviv. Quem estava no comando da Redação era a secretária-assistente Renata Lo Prete, 32:
"Reabrimos o jornal. Fizemos chamada de Primeira Página e texto interno para noticiar o atentado, até então de consequências pouco claras. Alguns despachos de agências declaravam Rabin 'levemente ferido'. Outros consideravam 'grave' seu estado de saúde".
A morte só se confirmou às 19h15, pela agência Reuter, com a notícia sendo atribuída a um porta-voz do governo israelense que se encontrava no hospital para onde tinha sido levado o primeiro-ministro ferido. Rabin foi declarado morto precisamente às 19h11 (horário de Brasília), informariam posteriormente a Reuter e a Associated Press. Em apenas 17 minutos, às 19h32, foi providenciada nova troca. A morte de Rabin tornou-se a manchete do jornal. Foi produzido também um texto para ocupar o alto de uma página interna, no caderno Mundo.
Foto colorida
Prossegue Lo Prete: "Começamos a preparar uma nova troca, de execução menos veloz porque envolveu reestruturação do desenho da cor na capa do jornal (para permitir manchete de corpo maior e publicação da foto do premiê pouco antes do assassinato) e de duas páginas internas que traziam, além do (relato) factual, repercussão, perfil de Rabin e memória de outros atentados".
A nova troca foi realizada às 20h50, informa a secretária-assistente de Redação. As máquinas rotativas estavam paradas desde as 20h. Com esta providência da diretoria industrial, foi possível incluir manchete e foto em cerca de 450 mil exemplares, 38% da tiragem total. Como muitas bancas da capital já tinham recebido seu reparte, foi montando um esquema de emergência para substituição de pacotes, mas isso só foi possível em alguns pontos estratégicos de venda.
Para a secretária de Redação Eleonora de Lucena, o resultado pode ser considerado satisfatório, nas condições observadas: "Acho que a gente teve um desempenho bastante bom em termos de agilidade. Temos de dar um crédito importante para o (departamento) Industrial. As máquinas ficaram paradas 50 minutos, algo raríssimo. O problema é que o jornal tinha começado a rodar muito antes. Estávamos amarrados".
Por que Ubatuba?
Por fim, resta o enigma ubatubano. Lucena explica que, durante a semana, a edição Nacional da Folha é concluída ("fechada") antes da São Paulo/DF, mas isso não ocorre no domingo. Em outras palavras, as duas edições são impressas paralelamente. Quando foi feita a troca, ainda havia cerca de 50 mil exemplares da Nacional por imprimir, destinados ao interior do Estado de São Paulo. No caso da capital, segundo informe da Diretoria de Circulação, as regiões mais prejudicadas foram oeste (onde fica Vila Madalena) e sul. "Não deu para refazer toda a distribuição", lamenta Eleonora de Lucena. Eu e outros 700 mil leitores também lamentamos, mas como ombudsman sou obrigado a concordar com Hanns John Maier e elogiar a agilidade da Redação. Seus jornalistas fizeram a coisa certa.
Quem errou, em todos os sentidos, foi Yigal Amir. Na mosca.

Texto Anterior: OPINIÃO DA FOLHA
Próximo Texto: NA PONTA DA LÍNGUA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.