São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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A insanidade democrática

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É pena a infeliz tradução do título do filme inglês "A Loucura do Rei Jorge". Não falo do erro banal, que consiste em não traduzir os nomes de reis, deixando "George" em vez de Jorge. (Como se fará com monarcas franceses de nome Luís ou Napoleão?). O grave mesmo é que "a loucura" virou "as loucuras". Imagina-se um rei simpático, rompendo regras, fazendo travessuras -uma versão atualizada do Pedro 1º das "Maluquices do Imperador", de Paulo Setúbal. Um rei transgressor, e que assim fica mais acessível a nosso imaginário.
Um traço chave na atual cultura brasileira, americanizada que é, consiste em desmontar o solene por meio do bufo, em negar tudo o que é distante -seja o culto, seja o emproado-, fazendo-o ficar perto de nós.
Dessa forma se tem uma iconoclastia vulgar, que não é o sarcasmo corrosivo e revolucionário, aquele por exemplo que Marx emprega em algumas passagens do "Dezoito Brumário", mas uma derivação da simpatia. Ou seja, em vez do afastamento brechtiano, que destroça o pretensioso, submetendo-o aos registros vulgares (e cujo elogio Umberto Eco de certo modo faz em "O Nome da Rosa"), temos aqui um narcisismo de "fast food", que reduz o grandioso, não para negar o conceito de grandiosidade e suas implicações autoritárias, mas para deixá-lo de nossa altura e talhe, autorizando-nos a dizer que "rei também é gente" (ou, no caso da cultura, que "Mozart também é gente").
Assim uma questão séria -um rei que perde a razão num tempo (1788) em que ainda controla em parte o Poder Executivo- vira, no título traduzido, a banalidade dos gestos e trejeitos, que de fato comparecem no filme, mas governados por outro problema. Vale então a pena apontar quais são as questões principais suscitadas no filme.
A primeira e principal é o problema de quem manda no rei. Vemos um Jorge 3º simpático. É um monarca afetuoso, capaz de perdoar, que com a mulher vive a relação nada aristocrática e muito burguesa (em termos do século 18) do casal apaixonado. Até se tratam por "Mr. King" e "Mrs. King" -o equivalente a um "sr. e sra. Reis"... Nada mais longe do vilão a que os norte-americanos estão acostumados, o rei contra quem travaram sua guerra de independência.
Mas, ainda assim, Jorge conhece sua autoridade. Não admite que o olhem no olho. E, quando enlouquece pela primeira vez, em 1788, por alguns meses (o tema do filme), o problema que surge é como mandar naquele que manda. O segredo de sua cura estará em haver alguém corajoso o bastante para lhe dizer a verdade e lhe dar ordens.
O homem que cura o rei é um pastor protestante, que -sem ter um diploma formal, sendo tido por mero curandeiro- se fez médico de almas. Seu mundo não é nobre ou respeitável, mas simples e, por isso, veraz. Trata os insanos com poucas regras. Diz-lhes a verdade: força-os a reconhecê-la, afastando-os de suas fantasias. Também não hesita em fazer uso de autoridade, dominando assim o próprio rei.
Para o fim do filme, saberemos -por um letreiro- que a estação louca de Jorge se deveu a uma doença chamada porfiríase; isso vem como uma verdade off, quase "ex machina", que relativiza toda a narração precedente. Mas é bom saber que não há consenso entre os especialistas sobre tal gênese fisiológica dos problemas mentais do rei. E é evidente que essa conclusão destoa do filme. A cura nele descrita (humanização do rei, encenação do "Rei Lear") supõe que a insanidade não pertença à natureza, mas ao mundo, humaníssimo, da cultura. O rei precisou aprender a ser humano, a conhecer suas limitações, a perder as ilusões do mando ilimitado. Soube que podia ser traído pelo filho, soube que era, como Lear, um velho tolo.
Esta é uma leitura moderna e, por que não, democrática do episódio. O rei aprende sua humanidade. Se antes era humano porque bonachão, paternal, agora se torna também humano porque sofredor, separado da mulher que o ama, perseguido pelo filho que o odeia. Mas esse aprendizado, que o devolve ao convívio social e ao trono, não perdura: logo demitirá todos os que ajudaram em sua cura. Tudo volta a ser como antes, com a única exceção de que Jorge aceita a perda de suas colônias americanas, os Estados Unidos.
A realeza insistirá, porém, desde agora no seu caráter de família. Esta é a passagem talvez mais atual do filme. Ao filho e herdeiro (que acabará assumindo o poder em 1811, quando o pai enlouquecer de vez), que lhe pede algo em que possa trabalhar, diz Jorge que sorria e cumprimente o povo. Nisso, antecipa a rainha Vitória. Sabemos que, quando ela assume o trono, em 1837, a realeza é extremamente impopular. O gênio de Vitória e seu marido, o príncipe Alberto, estará em legitimarem a família real, tornando-a, cada vez mais, família. O famoso moralismo vitoriano está aqui: a dinastia é uma família exemplar, que cumpre todos os deveres e sorri ao povo.
Ora, é isso o que entra em crise em nosso século. (Talvez convenha acrescentar que, entre os valores da realeza britânica tamanho família, nunca esteve o estudo, o conhecimento, a cultura). Os dois últimos príncipes de Gales são o melhor exemplo disso. David, o elegante rapaz que reinou por um ano com o nome de Eduardo 8º e renunciou por amor a uma americana divorciada para tornar-se o duque de Windsor, tem inúmeros traços que prenunciam seu sobrinho-neto e sucessor no título de herdeiro, Charles. Também Charles teve um pai autoritário e gélido, também ele aprecia sobretudo mulheres casadas, também ele talvez não chegue a reinar por muito tempo.
Mas entre os dois há a brutal diferença do papel que representaram. A crise que levou Eduardo a abdicar nem sequer foi noticiada nos jornais ingleses. Quando o povo soube o que acontecia, tudo estava terminado, e uma família exemplar -Jorge 6º, sua mulher Elizabeth, suas filhas Elizabeth (a atual rainha) e Margaret- já ocupava o palácio real.
Hoje, porém, as coisas são diferentes. Parece que nada sobrou de exemplar na família Windsor. A ética da abnegação também foi penetrada pelo desejo, tão classe média, de satisfação pessoal, que caracteriza nossos tempos e que, aliás, nada tem de condenável. Mas o problema, e "A Loucura do Rei Jorge" o traz à mente, é se a realeza britânica pode continuar existindo se tiver por motor, não mais o espírito de sacrifício pela pátria, mas o da ambição individual; e aqui pouco importa se o que se sacrifica é a vida no campo de batalha ou as paixões no dia-a-dia, e se o que se ambiciona é dinheiro ou felicidade amorosa.

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