São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995 |
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A insanidade democrática
RENATO JANINE RIBEIRO
Um traço chave na atual cultura brasileira, americanizada que é, consiste em desmontar o solene por meio do bufo, em negar tudo o que é distante -seja o culto, seja o emproado-, fazendo-o ficar perto de nós. Dessa forma se tem uma iconoclastia vulgar, que não é o sarcasmo corrosivo e revolucionário, aquele por exemplo que Marx emprega em algumas passagens do "Dezoito Brumário", mas uma derivação da simpatia. Ou seja, em vez do afastamento brechtiano, que destroça o pretensioso, submetendo-o aos registros vulgares (e cujo elogio Umberto Eco de certo modo faz em "O Nome da Rosa"), temos aqui um narcisismo de "fast food", que reduz o grandioso, não para negar o conceito de grandiosidade e suas implicações autoritárias, mas para deixá-lo de nossa altura e talhe, autorizando-nos a dizer que "rei também é gente" (ou, no caso da cultura, que "Mozart também é gente"). Assim uma questão séria -um rei que perde a razão num tempo (1788) em que ainda controla em parte o Poder Executivo- vira, no título traduzido, a banalidade dos gestos e trejeitos, que de fato comparecem no filme, mas governados por outro problema. Vale então a pena apontar quais são as questões principais suscitadas no filme. A primeira e principal é o problema de quem manda no rei. Vemos um Jorge 3º simpático. É um monarca afetuoso, capaz de perdoar, que com a mulher vive a relação nada aristocrática e muito burguesa (em termos do século 18) do casal apaixonado. Até se tratam por "Mr. King" e "Mrs. King" -o equivalente a um "sr. e sra. Reis"... Nada mais longe do vilão a que os norte-americanos estão acostumados, o rei contra quem travaram sua guerra de independência. Mas, ainda assim, Jorge conhece sua autoridade. Não admite que o olhem no olho. E, quando enlouquece pela primeira vez, em 1788, por alguns meses (o tema do filme), o problema que surge é como mandar naquele que manda. O segredo de sua cura estará em haver alguém corajoso o bastante para lhe dizer a verdade e lhe dar ordens. O homem que cura o rei é um pastor protestante, que -sem ter um diploma formal, sendo tido por mero curandeiro- se fez médico de almas. Seu mundo não é nobre ou respeitável, mas simples e, por isso, veraz. Trata os insanos com poucas regras. Diz-lhes a verdade: força-os a reconhecê-la, afastando-os de suas fantasias. Também não hesita em fazer uso de autoridade, dominando assim o próprio rei. Para o fim do filme, saberemos -por um letreiro- que a estação louca de Jorge se deveu a uma doença chamada porfiríase; isso vem como uma verdade off, quase "ex machina", que relativiza toda a narração precedente. Mas é bom saber que não há consenso entre os especialistas sobre tal gênese fisiológica dos problemas mentais do rei. E é evidente que essa conclusão destoa do filme. A cura nele descrita (humanização do rei, encenação do "Rei Lear") supõe que a insanidade não pertença à natureza, mas ao mundo, humaníssimo, da cultura. O rei precisou aprender a ser humano, a conhecer suas limitações, a perder as ilusões do mando ilimitado. Soube que podia ser traído pelo filho, soube que era, como Lear, um velho tolo. Esta é uma leitura moderna e, por que não, democrática do episódio. O rei aprende sua humanidade. Se antes era humano porque bonachão, paternal, agora se torna também humano porque sofredor, separado da mulher que o ama, perseguido pelo filho que o odeia. Mas esse aprendizado, que o devolve ao convívio social e ao trono, não perdura: logo demitirá todos os que ajudaram em sua cura. Tudo volta a ser como antes, com a única exceção de que Jorge aceita a perda de suas colônias americanas, os Estados Unidos. A realeza insistirá, porém, desde agora no seu caráter de família. Esta é a passagem talvez mais atual do filme. Ao filho e herdeiro (que acabará assumindo o poder em 1811, quando o pai enlouquecer de vez), que lhe pede algo em que possa trabalhar, diz Jorge que sorria e cumprimente o povo. Nisso, antecipa a rainha Vitória. Sabemos que, quando ela assume o trono, em 1837, a realeza é extremamente impopular. O gênio de Vitória e seu marido, o príncipe Alberto, estará em legitimarem a família real, tornando-a, cada vez mais, família. O famoso moralismo vitoriano está aqui: a dinastia é uma família exemplar, que cumpre todos os deveres e sorri ao povo. Ora, é isso o que entra em crise em nosso século. (Talvez convenha acrescentar que, entre os valores da realeza britânica tamanho família, nunca esteve o estudo, o conhecimento, a cultura). Os dois últimos príncipes de Gales são o melhor exemplo disso. David, o elegante rapaz que reinou por um ano com o nome de Eduardo 8º e renunciou por amor a uma americana divorciada para tornar-se o duque de Windsor, tem inúmeros traços que prenunciam seu sobrinho-neto e sucessor no título de herdeiro, Charles. Também Charles teve um pai autoritário e gélido, também ele aprecia sobretudo mulheres casadas, também ele talvez não chegue a reinar por muito tempo. Mas entre os dois há a brutal diferença do papel que representaram. A crise que levou Eduardo a abdicar nem sequer foi noticiada nos jornais ingleses. Quando o povo soube o que acontecia, tudo estava terminado, e uma família exemplar -Jorge 6º, sua mulher Elizabeth, suas filhas Elizabeth (a atual rainha) e Margaret- já ocupava o palácio real. Hoje, porém, as coisas são diferentes. Parece que nada sobrou de exemplar na família Windsor. A ética da abnegação também foi penetrada pelo desejo, tão classe média, de satisfação pessoal, que caracteriza nossos tempos e que, aliás, nada tem de condenável. Mas o problema, e "A Loucura do Rei Jorge" o traz à mente, é se a realeza britânica pode continuar existindo se tiver por motor, não mais o espírito de sacrifício pela pátria, mas o da ambição individual; e aqui pouco importa se o que se sacrifica é a vida no campo de batalha ou as paixões no dia-a-dia, e se o que se ambiciona é dinheiro ou felicidade amorosa. Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch Próximo Texto: ZUMBI DO BRASIL Índice |
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