São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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O pecado do sentimentalismo

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

A ânsia legítima de despejar em praça pública, para deleite alheio, o nosso humanitarismo, a piedade, o desconsolo diante das misérias do mundo pode estar na origem muitas vezes secreta de uma atividade artística. Mas não deve contaminá-la a ponto de sobressair-se em relação à própria obra.
Quando tal contaminação predomina, expressando-se numa rarefação de estilo, por exemplo, estamos diante de uma espécie de sacerdote e não, necessariamente, de um artista.
Esse confronto secular entre forma e conteúdo, inerente à criação literária, aflora de modo expressivo na performance de "Inquéritos em Preto-e-Branco", primeiro livro de contos do escritor gaúcho Nilson Luiz May.
O segundo grupo é formado por "O Romance Bizantino do Escritor Adalberto Cezílio" (com um bizarro final para os manuscritos de um romance histórico que consumiu décadas para ser escrito), "A Carta" (em que o autor "brinca" com a noção de tempo de forma simples e despretensiosa) e "Titio" (uma criança e suas expectativas ante a anunciada chegada de um tio da Alemanha do pós-guerra).
Curioso notar que Nilson Luiz May, 55, médico, tendo já publicado um romance e textos literários esparsos em revistas e jornais desde a década de 60, obtém algo raro: decompor em literatura elementos pescados de seu ofício principal, o que se evidencia particularmente nos contos do primeiro grupo mencionado acima.
Neles, o profissional da medicina consegue esquecer de si mesmo para, buscando com inquietude, como já se disse, "o sentido imanente das coisas", retorcendo enredo e linguagem, transformar-se em autor.
Em "Combate Final', por exemplo, há o seguinte trecho:
"A escarradeira, eles me deram. (...) É que assim não cuspo no chão. Com o pé comprimo o pedal, a tampa levanta e a boca do recipiente se abre para receber minhas células cancerosas. Solto o pedal e a boca se fecha, guardando para si os segredos da ciência. Por isso eles me deram a escarradeira".
No entanto, embora Luiz May demonstre, no conjunto de seu livro, ter domínio maduro de texto e de diferentes técnicas narrativas, essa transmutação nem sempre dá certo.
"Tião Maravilha", por exemplo, é bem escrito, economiza nas vírgulas e nos adjetivos, mas tem um final muito previsível e quase demagógico, por assim dizer. O mesmo se pode afirmar do conto que empresta seu título ao livro.
Já "Pequenos Contos Fantásticos" é uma coletânea de mini-histórias que têm o sabor saudável de exercícios literários, mais do que de pequenas obras concluídas.
Os outros seis contos do livro, ainda que carregados de emoção, ou talvez justamente por causa disso, parecem mais adequados ao púlpito sacerdotal do que à arena tortuosa da literatura, na qual sentimentalismo em excesso é um verdadeiro... pecado!

A OBRA
Inquéritos em Preto-e-Branco, de Nilson Luiz May. 119 págs. Editora Mercado Aberto (r. da Conceição, 165, Porto Alegre, RS, CEP 90030-030, tel. 051/221-8595). R$ 7,50

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