São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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Holanda quis 'reescravizar' negros

MARILENE FELINTO
DA ENVIADA A AMSTERDÃ

Parte da história da escravidão no Brasil ainda dorme em arquivos da Holanda, conforme a Folha apurou junto aos estudiosos da ocupação holandesa (1624-1654), Hannedea van Nederveen Meerkerk (leia entrevista à pág. 5-5) e Paul Meurs, em Amsterdã.
O arquiteto Paul Meurs, especialista em arquitetura militar holandesa do século 17, disse que "ainda é estranho encontrar aqui, em nossa própria língua, documentos sobre o Brasil, um país tão diferente da Holanda". Meurs elabora estudo sobre a evolução urbana de Recife e acha que mais historiadores brasileiros devem aprender holandês para ter contato com documentos "desse período curto, mas rico em experiência cultural para os dois países".
A presença holandesa no Brasil ganhou impulso durante o governo do conde e militar holandês João Maurício de Nassau (Johan Maurits van Nassau-Siegen, 1604-1679), na então Capitania de Pernambuco. Nassau estabeleceu em Recife o centro da administração colonial holandesa, controlada pela Companhia das Índias Ocidentais, associação de comércio e tráfico de mercadorias e escravos.
Durante o período holandês, os escravos negros -que aparecem serenos nas paisagens do pintor Frans Post (1612-1680)- rebelaram-se e fugiram aos milhares para as matas da serra da Barriga, hoje Estado de Alagoas, consolidando o maior, mais duradouro e organizado quilombo da história da escravidão nas Américas, o de Palmares, que já existia em 1605.
Os escravos aproveitaram-se da confusão estabelecida em Pernambuco, pela guerra entre holandeses e portugueses, para escapar das fazendas e dos engenhos abandonados pelos senhores brancos. Os holandeses chamavam os negros fugidos de "boslopers" (literalmente, "corredores das florestas").
Dentre os documentos holandeses que tratam da situação dos negros durante a ocupação, a historiadora Hannedea van Nederveen destaca a importância dos arquivos do Museu Judaico de Amsterdã. "Os judeus holandeses de Recife eram grandes compradores de escravos, tinham muito contato com os negros", afirma. Ela também ressalta os diários de viajantes como Johannes Nieuhof.
"Relatos de Zacharias Wagner e Nieuhof sobre Palmares já indicam o culto dos negros a xangô naquela época", observa van Nederveen. "Nieuhof conta que os negros de Palmares dançavam ao bater de tambores, que podiam ser ouvidos até perto da meia-noite".
Para o historiador pernambucano Antônio Gonsalves de Mello Neto, 78, "a bibliografia contemporânea em língua holandesa é, sem dúvida, mais rica que a portuguesa e de grande valor documental" (prefácio a "Tempo dos Flamengos", 1944).
Mello Neto, estudioso pioneiro da ocupação holandesa, escreveu em 1934 o primeiro texto importante sobre a relação dos negros com os holandeses, em que retoma (do historiador Rocha Pombo) o conceito da "reescravização do escravo", a ser empreendido pelo colonizador holandês.
Os negros, que já eram escravos dos portugueses, teriam de ser reescravizados pelos novos invasores. "Tarefa impossível em tão pouco tempo", como conclui a holandesa van Nerderveen, "e dada a absoluta falta de know-how" do seu povo para lidar com cana-de-açúcar e escravos, principal riqueza da colônia.
Os holandeses deram por definitivamente derrotada sua aventura no Brasil em 1654, deixando pronto todo um ambiente favorável para o nascimento daquele que seria o mais comemorado dos negros que lutaram por liberdade: Zumbi, nascido na "república livre" de Palmares em 1655.

FONTES
1. José Antônio Gonsalves de Mello, "A Situação do Negro Sob o Domínio Holandês", in "Novos Estudos Afro-Brasileiros", Rio, 1937; e "Atitude dos Holandeses Para Com os Negros e a Escravidão", in "Tempo dos Flamengos", Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, Recife, 1987
2. Hannedea van Nederveen Meerkerk, "Recife - The Rise of a 17th-Century Trade City From A Cultural-Historical Perspective", trad. do holandês para o inglês por Cecilia M. Willems, Van Gorcum, Assen/Maastricht (Holanda), 1989

ONDE PESQUISAR NA HOLANDA
Museu Nacional de Amsterdã (Rijksmuseum), tel. 31 20 673-2121
Museu Histórico de Amsterdã (Amsterdams Historisch Museum), tel. 31 20 523-1822
Museu Judaico de Amsterdã (Joods Historisch Museum), tel. 31 20 626-9945
Museu Marítimo de Amsterdã (Nederlands Scheepvaartmuseum), tel. 31 20 523-2222
Casa de Maurício de Nassau, em Haia (Mauritshuiss), tel. 31 70 346-9244
Museu Histórico de Haia (Haags Historisch Museum), tel. 31 70 364-6940
Museu Municipal de Haia (Haags Gemeentmuseum), tel. 31 70 338-1111

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