São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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Italiana espera julgamento há 51 anos

DENISE CHRISPIM MARIN
DA ENVIADA ESPECIAL

A italiana Giulia Spizzichino passou 51 de seus 68 anos esperando pelo julgamento dos responsáveis pelo Massacre das Fossas Ardeatinas.
Aos 17 anos, em Roma, viu boa parte de sua família ser levada em caminhões do Exército alemão. Os sete homens se somaram à lista de 335 executados de joelhos e com as mãos amarradas às costas.
O grupo de 18 mulheres e crianças acabou nas câmaras de gás do campo de concentração de Auschiwtz, na Polônia.
Em outubro de 1994, Spizzichino esteve em Buenos Aires e em Bariloche, a convite da Liga Internacional pelos Direitos dos Povos, para contar a tragédia de sua família e pedir a extradição de Erich Priebke.
"Depois de tantos anos, continuo enferma. Meu coração é cheio de dor", afirmou Spizzichino, de Roma, à Folha.
A seguir, alguns trechos de sua entrevista.

Folha - Sabemos que vários de seus parentes foram executados nas Fossas Ardeatinas. A senhora poderia contar como foi?
Giulia Spizzichino - Era toda a família de minha mãe. Meu avô, Mosés di Consiglio, seus dois filhos e quatro netos.
No mesmo dia, 21 de março, foram levadas também as mulheres e as crianças. Havia um bebê de 15 dias.
Os homens foram fuzilados nas Fossas Ardeatinas em 24 de março. As mulheres e as crianças foram levadas a Auschiwtz e executadas nas câmaras de gás.
Folha - Quantas mulheres e crianças estavam no grupo?
Spizzichino - Estava minha avó, Orabona, de 63 anos, e mais 17 mulheres e crianças.
Folha - Ninguém sobreviveu?
Spizzichino - Nenhuma pessoa.
Folha - Como foi a prisão?
Spizzichino - Eu estava na casa de uma tia, em frente à de meu avô. Vi pela janela o caminhão que os levava. Minha irmã Valéria, que tinha 8 anos, também ia ser levada. No momento em que subia no caminhão, conseguiu escapar. Ela até hoje se recusa a falar sobre o assunto.
Meu tio disse a Valéria, em iídiche, para que não fugisse porque iria revelar onde estava o resto da família. Ela não se deu conta. Viu os nazistas e teve medo.
Um soldado correu atrás dela. Meu pai, que estava vendo o que acontecia, mostrou nossos documentos falsos, com sobrenome típico italiano. O soldado aceitou.
Folha - Que tipo de atividades exerciam seus parentes?
Spizzichino - Um de meus tios era açougueiro. Meu avô era comerciante. Não se interessavam por política ou pela guerra. Eram judeus e a única coisa que pensavam era em estar preparados para qualquer eventualidade.
Folha - Como sua família soube do que havia passado com seus parentes?
Spizzichino - Soubemos que eles foram obrigados a subir encima de corpos dos que já haviam sido executados. Tiveram que se ajoelhar e levaram um tiro ou um golpe na nuca.
Quando chegaram os ingleses e norte-americanos, descobriu-se que havia uma montanha de 2 m de corpos nas Fossas Ardeatinas. Muitos, feridos, morreram sufocados pelos corpos dos outros.
Folha - Como a senhora avalia esses fatos depois de 50 anos?
Spizzichino - Depois de tantos anos, continuo enferma com isso. Toda noite vejo meu avô diante dos meus olhos. Eu amava tanto meu avô, minha avó, meus tios... Para mim, não se passaram 50 anos. Meu coração é cheio de dor.
Folha - Qual a sua expectativa com a extradição de Priebke e seu julgamento na Itália?
Spizzichino - Eu lutei tanto por isso. Muita gente me ajudou na Argentina. Falei com advogados, ministros, bispos, com televisões e jornais. Senão, não iríamos conseguir a extradição.
Folha - Mas Priebke será julgado por um Tribunal Militar e por crime de guerra.
Spizzichino - Ele terá que responder também porque havia 75 judeus entre os militares. Foi um genocídio. O importante é que as pessoas não se esqueçam disso.
Folha - Em várias entrevistas, Priebke mencionou as pessoas executadas como condenadas pela Justiça italiana. Era assim?
Spizzichino - Priebke sempre conta que as 335 pessoas fuziladas eram terroristas. Não é verdade. Muita gente foi presa nas ruas porque estava sem documento. Havia um general, um padre, pessoas que estavam por sair da cadeia.
Folha - O governo italiano, na época, não fez nada?
Spizzichino - Não sei dizer. Parece que Priebke voltou muitas vezes à Itália sem problemas. Seu superior, Herbert Kappler, foi condenado à prisão perpétua.
Mas fugiu do hospital militar, onde estava internado, dentro de uma mala.
Folha - O que a senhora gostaria que acontecesse a Priebke? Que fosse condenado também à prisão perpétua?
Spizzichino - Isso seria o melhor. Mas como está velho, doente, não posso dizer nada. O importante é que ele fale.
O promotor militar, Antonio Intelisano, parece ter um testemunho-chave. Priebke sempre disse que foi obrigado a participar do massacre.
Mas não é verdade. Fez porque queria fazê-lo. Quando percebeu que havia mais gente na lista, não fez nada.
(Denise Chrinpin Marin)

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