São Paulo, sábado, 18 de novembro de 1995
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Por que São Paulo faliu?

RUBENS RICUPERO

Confessou-me um leitor ter ficado decepcionado com meu último artigo. Eu teria feito todas as perguntas certas, mas não dei as respostas desejadas.
Reconheço fundamento na crítica. Esforcei-me em acentuar o paradoxo de um Estado de economia vigorosa, mas governo falido, como exceção à regra de que, em geral, o desenvolvimento deveria melhorar as condições globais de uma sociedade, trazendo uma mudança qualitativa tanto para a vida econômica como para a política.
Quis, assim, chamar a atenção para a conferência que o Instituto Braudel promove, a partir de 27 de novembro, a fim de buscar precisamente explicações e remédios para o que seria uma anomalia paulista em relação a essa regra.
Hesitei em dar eu mesmo as explicações -em parte, porque não tenho muitas respostas. Suspeito que o fenômeno seja demasiado complexo, tenha causas numerosas e ninguém, isoladamente, seja capaz de decifrá-lo de forma satisfatória. Por isso mesmo é que a conferência do Instituto Braudel reunirá gente dos EUA, da Inglaterra, da Índia e do Japão para ajudar-nos a encontrar as respostas.
O ponto de partida é, obviamente, a relação que deveria existir entre desenvolvimento econômico e político. Deveria existir, mas nem sempre existe na prática ou nem sempre ocorre da forma linear e irreversível que se espera.
Na Dinamarca ou na Holanda, ninguém dúvida de que a prosperidade da economia encontra perfeita correspondência no setor político, num governo tecnicamente competente e financeiramente responsável.
Nem sempre, porém, é assim. No Brasil, tornou-se lugar-comum afirmar que o setor privado fez o seu ajuste antes e melhor do que o público.
O mesmo se diz de outros países latinos, inclusive da Europa. Chega-se a comentar com certo exagero, no caso da Itália, que a pujança da economia conflita com os problemas de um setor político visto mais como entrave do que como benefício. É conhecida, por exemplo, a frase de Mussolini de que não é impossível governar a Itália. Seria apenas inútil...
É curioso que se diga isso justamente de países que sempre foram demasiadamente dependentes do Estado, onde a sociedade civil é mais débil e o crescimento econômico, inclusive do setor privado, deve muito ao governo.
Sem aprofundar o ponto, admitamos que, em São Paulo e no Sul em geral, o setor privado, empresários e profissionais, tenha nível de eficiência superior ao do setor público.
Se assim for, como de fato parece ser, resta indagar o porquê da discrepância. Qual a razão que teria provocado um hiato entre a mudança qualitativa ocorrida no setor privado e a que falta ou está atrasada no domínio do governo?
Nesse particular, a situação paulista seria anômala até mesmo em relação ao que se observa na Itália.
Tempos atrás, Robert Puttnam comparou em "Making Democracy Work" os diversos governos regionais italianos do após-guerra, medidos pela eficiência com que resolveram problemas concretos e em termos dos índices de satisfação das populações.
O resultado foi o que a lógica indicaria. Os governos de maior êxito (Emília-Romanha, Trentino-Alto Adige, Vêneto) correspondiam às regiões de economia mais próspera. Coincidiam também com as regiões onde, desde a Idade Média, existe forte tradição de participação dos cidadãos na vida comunitária, por inúmeras associações e entidades que organizam e mobilizam a sociedade civil.
Entre nós, Wanderley Guilherme dos Santos constatou igualmente que, desde o fim do período militar, assistimos a uma multiplicação de entidades associativas, que vão dos clubes às comunidades de base, às ONGs, ambientais ou outras, às associações de moradores e bairros, aos movimentos dos sem-terra.
O fenômeno é geral, sobre todo o território e todas as regiões. Conforme seria de esperar, a tendência é muito mais intensa nos Estados desenvolvidos, como São Paulo. Aqui, porém, termina a analogia com o processo universal segundo o qual o crescimento econômico é acompanhado de um desenvolvimento correspondente na capacidade de auto-organização da sociedade, com suas implicações positivas para a vida política.
No Brasil, não seria bem assim. O professor Guilherme dos Santos verificou que, não obstante o crescimento do associativismo e do espírito comunitário, a atitude média dos cidadãos em relação às instituições e ao sistema político é uniformemente cética, negativa, passiva e até cínica.
Em temas como a falta de confiança na Justiça e na polícia (a relutância em dar queixa de crime, por exemplo) e a resignação em não cobrar desempenho dos deputados nos quais votou, a reação do paulista não difere, em substância, da do pernambucano, piauiense ou amazonense.
Com razão, Santos considera inquietante esse desvio da regra, que nos faz correr o risco de perdermos um dos dividendos mais preciosos do processo de desenvolvimento econômico.
Além dos condicionamentos de uma herança cultural e histórica desfavorável, a razão da passividade estaria na opacidade e falta de resposta do sistema político, na inexistência de um nexo de causa e efeito entre o desempenho do político e suas chaves de reeleição, asseguradas mais pelo poder econômico e pela distribuição de favores do que pela fidelidade ao mandato.
O problema não é, como se sabe, apenas brasileiro. Afeta os demais latino-americanos, a Itália nas suas instituições nacionais, a maioria das democracias.
É, no fundo, tema permanente do debate sobre a crescente indiferença dos cidadãos pelo cumprimento dos deveres democráticos, o primeiro dos quais o voto, em baixa tanto na Suíça como nos EUA. É o mesmo tema que alimentou, no passado, as teorias sobre as elites de Paretto e Mosca.
Chegamos, assim, a uma das causas centrais do problema de São Paulo. Haverá outras, como o defeituoso federalismo brasileiro, o caráter concentrador e excludente do desenvolvimento econômico, o crescimento monstruoso da cidade em tempo excessivamente curto etc.
Dentre todas essas razões, a mais geral e decisiva, no entanto, será talvez a má qualidade das instituições e do sistema político.
Não faz muito, o Prêmio Nobel de Economia foi dado a pesquisadores que procuraram justamente valorizar a importância maior das instituições e das leis como fator explicativo do desenvolvimento econômico. O político, dessa forma, é que criaria as condições do econômico, e não vice-versa.
Nesse ponto, a nossa tradição cultural e histórica, como a da maioria dos povos do continente, não é das melhores. É aqui, portanto, que me parece deve-se concentrar a atenção prioritária. Embora a herança cultural conte nessa matéria e a nossa seja das mais pesadas, o próprio das instituições e das leis é que elas são sempre passíveis de aperfeiçoamento.
É nesse espírito, creio, que se justifica duplamente uma iniciativa como a que toma o Instituto Braudel em relação à falência de São Paulo: como um estímulo aos cidadãos para assumirem sua responsabilidade comunitária e como tentativa de reflexão acerca da necessária ação para reconstruir as instituições públicas, chave da solução para os problemas paulistas.

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