São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Gilberto Freyre sob suspeita

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 18/12/95
Em foto publicada à pág. 5-10 ( Mais!) de 19/11, o sociólogo Gilberto Freyre prepara-se para embarcar em um avião, e não em um navio, como foi erroneamente informado na identificação da foto.
Traços de algum tipo de preconceito de Gilberto Freyre contra os judeus já haviam sido observados por alguns leitores de "Casa-Grande & Senzala", sua obra principal, publicada em 1933.
Uma tese defendida no final de outubro no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP procura mostrar que o anti-semitismo de Freyre se manifesta em seus escritos desde 1921 e persiste até meados de 1936.
Não há dúvida, escreve a historiadora Silvia Cortez Silva, que Gilberto Freyre (1900-1987) deva ser "arrolado em companhia da elite intelectual brasileira que, nos anos 30 e 40, contribuiu para reforçar a imagem estereotipada do judeu no momento em que o anti-semitismo ganhava espaço por toda a Europa".
Mas "Tempos de Casa-Grande", título de sua tese, traz inúmeros textos escritos por Gilberto Freyre ao longo de 15 anos para tentar demonstrar que as idéias preconceituosas do sociólogo não são acidentais, ou fruto de um ambiente propício, mas têm raízes.
Silvia desencava artigos publicados por Freyre na imprensa pernambucana, enviados dos EUA, no início dos anos 20, nos quais o sociólogo então em formação usa e abusa de um vocabulário preconceituoso (leia trechos ao lado).
A repetição até 1936, data da publicação de "Sobrados e Mocambos", de alguns termos pejorativos, como "israelita solerte" e "parasitismo judeu", além do advérbio "israelitamente", para não falar de comparações agressivas, como uma do judeu com uma "ave de rapina", acabam criando, na visão de Silvia, um tipo único: o "judeu freyreano".
Silvia acha que Freyre tenta responsabilizar o judeu pela morte da atividade agrícola em Portugal, caracterizando o "parasitismo" como uma característica típica do judeu. Esse termo, ela observa, faz parte do vocabulário e da literatura anti-semita da década de 30.
"No entanto, não podemos igualar o anti-semitismo gilbertiano ao discurso panfletário de um Gustavo Barroso (um dos precursores do integralismo). (...) Se Barroso escreveu de forma direta contra os judeus, Freyre o fez com sutileza, nas linhas e entrelinhas", escreve Silvia, que é professora de história do livro e das bibliotecas na Faculdade de Biblioteconomia da Universidade Federal de Pernambuco.
Polêmica
A controvérsia provocada pelo estudo de Silvia Cortez Silva teve início na própria tarde em que a tese foi defendida, no último dia 23 de outubro, na USP.
A banca foi composta pela orientadora de Silvia, a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, autora de "O Anti-semitismo na Era Vargas", e pelos professores Sérgio Miceli e Anita Novinsky, da USP, e Alcir Lenharo e Elide Rugai Bastos, da Unicamp (Universidade de Campinas).
A historiadora Anita Novinsky afirmou na arguição que Freyre "usa uma linguagem anti-semita tradicional, mas não pode ser considerado um anti-semita tradicional, como Gustavo Barroso".
As restrições mais sérias foram feitas pelo sociólogo Sérgio Miceli. Segundo ele, Silvia "descarnou as citações do seu contexto mais geral" e "não teve generosidade para a leitura da obra" de Freyre.
Miceli acha que a tese tenta "politizar" a obra de Freyre para tentar desqualificá-la. "Outros já fizeram isso. Não altera a importância da obra", diz.
Por conta dessas e de outras críticas, a banca deu nota 9,3 à tese.
Outros estudos
Silvia escreve que "o perfil anti-semita de Gilberto Freyre foi até hoje alvo de poucos comentários". Na sua opinião, "possivelmente, esta atitude está ligada à figura que ele representou e representa a nível regional, nacional e internacional, metamorfoseado em mito".
A relação de Gilberto Freyre com os judeus é tema de pelo menos um estudo e é citado em vários outros. O cientista político Marcos Chor Maio já se dedicou ao tema e tem uma opinião radicalmente oposta à de Silvia Cortez Silva (leia artigo na página ao lado).
Ao longo da tese, Silvia se socorre de três textos que já mencionaram o preconceito de Freyre. Num prólogo a uma edição hispânica de "Casa-Grande & Senzala", dos anos 70, Darcy Ribeiro compara o tratamento dado por Freyre a mouros e judeus.
Enquanto o retrato traçado dos mouros parece positivo, "do judeu, ao contrário, o retrato é caricaturesco e impiedoso", escreve Darcy, no texto que foi republicado em "Ensaios Insólitos" (L&PM, 1979) e "Sobre o Óbvio" (editora Guanabara, 1986).
Na opinião de Darcy Ribeiro, então, Freyre procura explicar "a sanha anti-semita" dos portugueses não como racismo, mas como "simples intolerância em defesa da pureza da fé".
Hoje, o antropólogo considera a questão irrelevante. "Isso é bobagem. Não tem importância, é um detalhe na obra", diz Darcy. "'Casa-Grande & Senzala' é o maior livro já escrito no Brasil. Quando escrevi meu texto, toda a esquerda era contra o livro e o atacava burramente", acrescenta.
Silvia também encontra apoio para sua tese num estudo do jornalista Júlio José Chiavenato, "O Inimigo Eleito: os Judeus, o Poder e o Anti-semitismo" (Mercado Aberto, 1985).
Segundo Chiavenato, "o sutil inconsútil anti-semitismo de Gilberto Freyre" se reflete no fato de o autor usar "mais de uma centena de estereótipos anti-semitas" em "Casa-Grande & Senzala".
Autor do best seller "O Genocídio Americano", sobre a Guerra do Paraguai, Chiavenato afirma hoje não ter dúvidas de que Freyre foi anti-semita. "Lendo o trecho em que ele compara o judeu a uma ave de rapina, por exemplo, não há lugar para outras interpretações. Seria como dizer que o negro fede. Está dentro de um contexto que não deixa dúvidas", diz.
Como outros autores que se debruçaram sobre o tema, Chiavenato ressalva que "isso não anula em nada o valor de 'Casa-Grande'. Ao contrário, até deixa a obra mais verdadeira, porque reflete o pensamento de uma época".
A terceira obra utilizada por Silvia Cortez Silva em sua tese é um ensaio de Luiz Costa Lima publicado no livro "A Aguarrás do Tempo" (Rocco, 1989).
O texto se intitula "A Versão Solar do Patriarcalismo: Casa-Grande & Senzala". Trata de demonstrar como Gilberto Freyre, apesar de ser declarar filiado às idéias do antropólogo Franz Boas, que procura ver a influência da cultura e do meio da formação de um povo, continua a destacar o fator étnico e racial em sua obra (uma discussão mais detalhada da questão está na entrevista ao lado).
Ao longo de sua argumentação, Costa Lima também transcreve a famosa passagem da obra de Freyre na qual ele compara o judeu a uma ave de rapina.
Costa Lima diz que o judeu emerge dessa descrição com um "perfil quase lombrosiano", numa referência a Cesare Lombroso (1835-1909), o psiquiatra e criminalista italiano que, em 1876, publicou um estudo mostrando que um criminoso pode ser identificado por algumas características físicas, como o tamanho do cérebro.

Texto Anterior: 055 notas sobre a cultura
Próximo Texto: TRECHOS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.