São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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Uma idéia de raça sem racismo

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

O debate sobre a questão racial na obra principal de Gilberto Freyre parece interminável. Em "Guerra e Paz", tese defendida em 1993 no Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e publicada no ano passado (editora 34), o antropólogo Ricardo Benzaquen de Araújo propõe uma nova interpretação para alguns problemas cruciais de "Casa-Grande & Senzala".
O trabalho rendeu ao pesquisador, em 95, o prêmio Jabuti de melhor ensaio nacional. Do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro), onde é professor, Araújo, 43, falou à Folha por telefone.

Folha - O sr. abre o seu trabalho citando um trecho do prefácio de Gilberto Freyre à primeira edição de "Casa-Grande & Senzala", no qual, o sr. diz, "Gilberto demonstra claramente endossar uma posição racista". Por que, na sua opinião, essa posição deve ser relativizada?
Ricardo Benzaquen de Araújo - Boa parte da imagem pública de Gilberto Freyre vem associada ao fato de que ele teria abandonado uma perspectiva racista, mais ou menos comum nos anos 10 e 20, e introduzido a idéia de cultura como um argumento importante para dar conta da tradição brasileira.
Essa passagem, que está no prefácio, serve para que ele mesmo crie a impressão de que antes operava um pouco com uma perspectiva racial e que mudou de posição. É uma estratégia narrativa, para passar ao leitor a sensação de que ele está rompendo com toda a discussão de raça que havia antes.
Folha - Nesse prefácio, Freyre também dirá que pretende seguir as idéias do antropólogo Franz Boas, especialmente a distinção entre raça e cultura. Luiz Costa Lima mostra, em 1989, que, apesar do que escreveu, Freyre não abandonou a idéia de raça no livro.
Araújo - O texto de Costa Lima é correto ao mostrar que, apesar do esforço de Freyre em aparecer como um puro seguidor de Boas, é mais ou menos evidente, lendo o livro, como ele continua operando com a idéia de raça.
O meu ponto é chamar a atenção para uma ambiguidade. De um lado, concordo que ele continua trabalhando com a noção de raça, ao contrário da impressão que Freyre tenta passar desde o prefácio. Por outro lado, tento qualificar a idéia de raça que ele está empregando.
Folha - É quando o sr. conclui que ele usa uma definição neolamarckiana de raça?
Araújo - Exato. Mas, antes, tento chamar a atenção para o fato de que o racismo moderno conhece duas grandes tradições, o poligenismo e o monogenismo.
Folha - É possível resumir?
Araújo - Ambas são oriundas da discussão iluminista do século 18. O traço mais marcante do poligenismo é a chamada hipótese pré-adamita, ou a idéia de que há centros independentes de criação do homem até anteriores a Adão.
Portanto as diferenças entre distintas raças teriam a ver com o fato de surgirem em pontos diversos. É a partir daí que há toda uma discussão que condena radicalmente a miscigenação. O pressuposto é que, se as raças são de origens distintas, se não há laços entre elas, o vínculo sexual resultaria apenas em esterilidade.
Folha - Biológica ou cultural?
Araújo - As duas coisas juntas. Essa é, portanto, uma posição mais radical, porque não vê remédio para um país miscigenado. Essa lógica será usada para condenar o Brasil como um país mestiço.
Folha - E o monogenismo?
Araújo - É uma posição que mantém a tradição cristã. Todos são filhos do mesmo pai. As diferenças entre brancos, negros, amarelos etc. são menos radicais. Dentro dessa lógica, fatores externos, como o clima, por exemplo, fizeram com que algumas raças se civilizassem mais depressa e outras, mais devagar. As diferenças físicas podem pesar sobre o espírito do homem, mas todas as raças chegarão ao mesmo objetivo, já que têm o mesmo ponto de partida.
Folha - Essa lógica explicaria a idéia de que a miscigenação racial pode levar a um processo de "branqueamento"?
Araújo - Essa é uma das concretizações possíveis da teoria. No caso do Brasil, a idéia de branqueamento foi muito importante, porque parte do pressuposto de que não haveria uma incompatibilidade absoluta entre negros e brancos, tal como numa posição poligenista. Assim, é possível a miscigenação, sobretudo acreditando que os genes brancos são mais poderosos que os negros e terminariam fazendo com que todo mundo acabasse branco.
Folha - Como o sr. sugere entender a posição de Freyre?
Araújo - De um lado, ele é um radical defensor da miscigenação, o que, evidentemente, não cabe numa perspectiva poligenista.
Por outro lado, é difícil associá-lo a um racismo de cunho monogenista. Nessa argumentação, normalmente o que se valoriza no vínculo sexual e cultural é precisamente a contribuição branca -quando a gente sabe que Gilberto vai chamar a atenção precisamente para a contribuição negra.
É verdade, como diz Costa Lima, que ele está trabalhando com a idéia de raça, mas não dá para associá-lo a uma tradição nem monogenista nem poligenista. Nesse ponto, ficou claro para mim que ele estava muito mais associado a essa perspectiva neolamarckiana.
Folha - Na qual a influência do meio agiria como uma categoria intermediária entre raça e cultura?
Araújo - É uma intermediação ativa. No fundo, é como se você tivesse uma idéia de raça sem racismo. Essa posição é muito influente na academia norte-americana à época em que Gilberto estuda lá (início dos anos 20). Ele teve contato com alguns dos autores mais vinculados à posição, como o sociólogo Franklin Giddings.
Folha - Por que essa idéia não está explicitada em "Casa-Grande & Senzala".
Araújo - Está. Ele discute ao longo de 11 páginas a contribuição neolamarckiana (entre as págs. 312 e 323 da primeira edição), mostrando simpatia por essa posição, mas termina reafirmando que segue as idéias de Boas. Mas deixa claro que é um tipo de posição compatível com Boas.
Folha - Como é compatível?
Araújo - Com o neolamarckianismo, não só se chama a atenção para a importância da idéia de clima e meio como um intermediário entre raça e cultura, como também se modifica o próprio sentido da idéia de raça, tornando-a compatível com a idéia de cultura.
Essa noção chama a atenção para a aptidão dos seres humanos em se adaptar às mais diferentes condições ambientais. É como se os seres humanos tivessem condições de incorporar, transmitir e herdar as características adquiridas nas suas relações com o meio.
Com isso você pode, inclusive, operar com a idéia de raça. Mas já não está mais lidando com hierarquia racial, porque não há nenhuma razão para acreditar que os habitantes de um certo clima, que constituíram uma raça que reflete as características desse meio, sejam melhores ou piores que outros.
Por outro lado, embora não seja necessário, é possível raciocinar em termos neolamarckianos e desenvolver uma postura racista.
Folha - Fato que ocorre em trechos da obra de Freyre.
Araújo - Eventualmente, é possível encontrar passagens em que alguns preconceitos racistas e uma certa noção de hierarquia racial aparecem, sim. Isso tem a ver com o estilo meio impreciso da obra, mas seguramente não é o tom.
Folha - Comparar o judeu a uma ave de rapina não seria, mais do que usar um "vocabulário marcado pelo louvor à biologia", como o sr. observa, um traço de anti-semitismo?
Araújo - Em vários momentos, quando ele está operando com uma linguagem mais racial, sem dúvida você vai ver a incorporação ao argumento de alguns preconceitos, que você podia encontrar na época. Agora, também há passagens em que os judeus são elogiados, e também de maneira convencional, reproduzindo preconceitos.
Não me parece absurdo pensar o tratamento dado aos judeus usando a regra da antinomia (a defesa simultânea de argumentos que se opõem), um tratamento que ele dá a todas as questões importantes.

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