São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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O fator judaico

MARCOS CHOR MAIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O judeu é personagem secundário em "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mocambos", as obras mais importantes de Gilberto Freyre. Ele serve para ilustrar o argumento freyreano da capacidade de os portugueses interagirem e incorporarem a diversidade étnica ao seu redor. Além disso, ao judeu é atribuído o papel de ter colaborado em alguma medida para o desenvolvimento e crise do antigo sistema patriarcal. É fácil, para qualquer estudo fragmentado, pinçar trechos, adjetivos e referências nos escritos do sociólogo pernambucano, que o inclua na lista dos intelectuais anti-semitas da década de 30. Seguirei caminho distinto. O meu objetivo nesse artigo é mostrar de que maneira o judeu pode ser visto como mais um exemplo da sofisticada interpretação do sociólogo do mito da democracia racial brasileira.
Estoque significa reserva e disponibilidade. Esta palavra não passa ao largo das reflexões presentes em "Casa-Grande & Senzala. Neolamarckiano, seguidor de seu mestre, o judeu alemão Franz Boas, em seu esforço de combinar criativamente biologia e teoria social, Freyre acreditava que só a associação entre raça, meio ambiente e cultura poderia explicar a origem do exitoso intercurso racial no Brasil.
Embora o judeu seja um ator coadjuvante no primeiro capítulo de "Casa-Grande & Senzala", o "estoque semita" é um indicador preciso na formação miscigenada do povo português, conforme as palavras do autor: "Hereditariamente predisposto à vida nos trópicos por um longo habitat tropical, o elemento semita, móvel e adaptável como nenhum outro, terá dado ao colonizador português do Brasil algumas das suas principais condições físicas e psíquicas de êxito e de resistência. Entre outras, o realismo econômico que desde cedo corrigiu os excessos de espírito militar e religioso na formação brasileira". Adaptação, miscibilidade e mobilidade são os conceitos-chave da montagem inicial da tese freyreana.
No capítulo três de "Casa-Grande & Senzala", Freyre amplia sua reflexão sobre a influência ibérica nos trópicos. Em Portugal, o autor se atém aos judeus da corte, servidores do Príncipe, das elites dominantes e, no entanto, descolados da sociedade. Neste momento, o sociólogo não escapa aos estereótipos do antijudaísmo tradicional, definindo o judeu como "uma poderosa máquina de sucção operando sobre a maioria do povo, em proveito não só da minoria israelita como dos grandes interesses de ordens religiosas. Técnicos de usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um processo de especialização quase biológico que lhes parece ter aguçado o perfil no de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e de posse, as mãos em garras incapazes de semear e de criar. Capazes só de amealhar".
Freyre apresenta lições de determinismo biológico associadas a imagens lombrosianas, como assinala Luiz Costa Lima. Todavia o aparente impasse gilbertiano revelado no confronto "estoque semita" versus "ave de rapina", é passível de uma interpretação fina. Diante da criação de uma civilização de novo tipo, Freyre -no interior de sua perspectiva neolamarckiano, tão bem analisada por Ricardo Benzaquen- acreditava na infinita capacidade dos homens de se adaptarem, transmitirem e herdarem características adquiridas em sua relação com o meio ambiente.
Desta forma, o autor cancela os estigmas anteriores em relação aos judeus, como se observa em sua afirmação: "Para os portugueses o ideal teria sido não uma colônia de plantação, mas outra Índia com que israelitamente comerciassem em especiarias e pedras preciosas; ou um México ou Peru donde pudessem extrair ouro e prata. (...) As circunstâncias americanas é que fizeram do povo colonizador, (...) com o sentido agrário mais pervertido pelo mercantilismo, o mais rural de todos: do povo que a Índia transformara no mais parasitário, o mais criador".
Assim, os "novos e empreendedores portugueses estariam imunes ao enquadramento arianista de Oliveira Viana, à associação de Sombart entre ética judaica e espírito capitalista e à predominância moura no início da colonização. Em outras palavras, diferentes grupos associados, incorporados e não hierarquizados na gente mista portuguesa, base étnica da empresa colonial.
Em "Sobrados e Mocambos", Freyre não está mais preocupado com a origem e formação do sistema patriarcal e sim com o desenvolvimento, crise e decadência do mesmo, revelado pelos impactos da modernização sobre a antiga ordem. Neste contexto, os judeus teriam contribuído para o fenecimento do complexo casa-grande/senzala não só como agentes financiadores da economia açucareira, mas também como elementos fomentadores do processo de urbanização.
É neste quadro de emergência das cidades que o autor aborda a tensa transição do patriarcalismo dos engenhos para os sobrados e registra a presença de alguns judeus como elementos de intermediação entre esses diversos universos.
O sociólogo assinala, por exemplo, que o controle sufocante do poder masculino sobre o feminino suscitou a criação de áreas de passagem, de oxigenação na conflitante relação entre a casa e a rua. Estas se corporificavam não somente em estruturas arquitetônicas, como a varanda e os jardins, mas também na participação de alguns personagens na vigiada redoma da aristocracia urbana como médicos de família e mascates de origem judaica, que partilhavam da intimidade, dos segredos e da revolta das mulheres e, em troca, traziam o mundo borbulhante e impessoal das ruas.
Talvez a evidência mais interessante do projeto abrangente de Freyre encontre-se na análise da influência do imperialismo inglês no Brasil do século 19, ou seja, a "reeuropeização". A tradição ocidental ibérica, influenciada pela cultura do Oriente -que se revelava tanto nas cores quanto na variedade de trajes, hábitos alimentares e arquitetura- teria sido hegemônica até a chegada da família real ao Brasil e a subsequente abertura dos portos.
Desse momento em diante, a avalanche reeuropeizante, monitorada pela Revolução Industrial, uniformizou produtos, gestos, gostos, vestimentas e habitações. Nesta massificação e acinzentamento do "Ocidente de fronteira", nenhum traço específico é atribuído aos judeus, que seriam identificados como "gente quase de casa".
Face à "reeuropeização", Freyre abandona de vez Sombart em sua "ética judaica e o espírito do capitalismo" e torna-se weberiano. Para Weber o anti-semitismo medieval estimulou um "capitalismo de párias", diferente do capitalismo racional, de corte protestante, que serviria de base para a constituição do sistema industrial do Ocidente.
Portanto os judeus não são incluídos nesta nova ocidentalização. Freyre, em "Sobrados e Mocambos", inventa e reforça os valores orientais, afirmando que "o Brasil assimilara-os por intermédio do português, do mouro, do judeu, do negro. O Brasil fizera-os valores seus. Ao findar o século 18, eram valores brasileiros. Ligavam amorosamente o homem e a sua casa à América tropical". É este orientalismo que assimila os judeus.
Herança ibérica, incorporadora, holista e reativa à modernização: eis o cenário em que circulam os judeus de Freyre. Em 1934, em plena ambiência antijudaica no mundo, o sociólogo pernambucano descreve a influência dos judeus sefaraditas e asquenazitas no Recife em seu livro "Guia Prático e Sentimental da Cidade do Recife". Este texto foi utilizado como instrumento de luta contra o anti-semitismo no Brasil.
Lembrando "The Strange", texto do sociólogo judeu alemão George Simmel, o qual Freyre admirava, o judeu em "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mocambos" não foi aquele estrangeiro "who comes today and goes tomorrow, but rather as the person who comes today and stays tomorrow" (que chega hoje e parte amanhã, mas sobretudo a pessoa que chega hoje e permanece amanhã).

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