São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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Tropeçando em "ismos"

Diderot visita o complicado mundo contemporâneo

ROBERT DARNTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Todos nós temos lá nossas fantasias escapistas. O grande truque está em localizá-las no lugar certo: na Riviera, em Bali, na cozinha da casa da mamãe ou onde lhe parecer melhor. Quando me ponho a fantasiar, fujo para os Champs Elisées e começo a conversar com Diderot, que adora ter um cientista social vanguardista, futurista e pós-moderno com quem dialogar. Entretanto, ele tem certa dificuldade para entender o que poderia vir a ser um "cientista social". Ofereci-me para lhe dar uma explicação:
Eu - Monsieur Diderot, o senhor mesmo poderia ser chamado de cientista social, não fosse pelo fato de ter vivido na idade das trevas epistemológicas. Por isso o senhor se batia pelo Iluminismo.
Ele - Idade das trevas? Mas eu lia tanto Condillac quanto Aristóteles. Tentei reunir todo o conhecimento numa só obra, a "Encyclopédie".
Eu - Mas o senhor não leu Kant, que pôs as idéias em seu devido lugar depois que Condillac as expulsara. O senhor também não leu Wittgenstein, que deu fim às categorias de Kant, e nem Chomsky, que as restaurou sob o nome de "estruturas profundas". Hoje em dia sabemos que "pensamento" é "discurso", e que este é feito de "jogos de linguagem".
Ele - Jogos? Eu gostava de jogar damas com Rousseau no Café de la Régence, mas como isso pode ser conhecimento? E o que é "discurso"? O mesmo que "diálogo"?
Eu - Não exatamente. O senhor escreveu excelentes diálogos, mas não havia lido Bakhtin, de modo que não sabia ser dialógico.
Ele - "Lógico" eu sei o que é...mas "dialógico"?
Eu - É uma questão de não apenas ler os textos, mas de deixar que eles o interroguem. Eles falam e nós recuperamos vozes perdidas. Mas não poderíamos esperar que você captasse subtextos sem ter lido Derrida.
Ele - Admito que estou confuso. Como poderia um texto falar?
Eu - Em sobretons e subtons -ou, se preferir, em subcorrentes. Parte do texto o arrasta para um lado, e então uma outra corrente o leva para o outro. O enredo dirige-se para certas conclusões que a retórica vem bloquear. A força ilocucionária desfaz a perlocucionária...
Ele - Perlocucionária? Ilocucionária? Trata-se de algo como graça suficiente e eficaz?
Eu - Perdão, esqueci-me que o senhor não leu Austin: o senhor não sabe Fazer Coisas com Palavras.
Ele - Bem, organizei um dicionário. Mas eu o chamei de Dictionnaire Raisonné ou Encyclopédie, isto é, uma obra que organizava o conhecimento de acordo com uma ordem racional e que abrangia todo o conhecimento humano.
Eu - Nada mal para aquela época, Monsieur Diderot. Mas agora sabemos mais coisas e temos mais enciclopédias. A melhor, decerto, é a Enciclopédia Chinesa, imaginada por Borges e comentada por Foucault.
Ele - Foucault? O intendente de Caen?
Eu - Não, o filósofo Foucault, o filósofo do século 20, o homem que mostrou como nós oprimimos os insanos quando os liberamos de suas correntes e que expôs a construção discursiva da sexualidade.
Ele - Sexo? Ele leu meu "Sonho de d'Alembert? Ele entendeu meu "Suplemento à Viagem de Bougainville"?
Eu - Receio que é o senhor que não está entendendo bem -ainda que a culpa não seja sua: o senhor não havia lido Freud ou Lacan. O senhor não sabia que todo garoto quer matar seu pai -para poder ir para a cama com a mãe.
Ele - Mas eu discuti exatamente esse tema n'"O Sobrinho de Rameau". Cheguei ao sexo por meio do diálogo.
Eu - É verdade, mas o senhor não chegou a fazer a distinção entre sexo e gênero. O senhor achava que os homens eram homens e as mulheres, mulheres. Mas nós sabemos que homens podem se transformar em mulheres, e vice-versa.
Ele - Você está falando do abade de Choisy? Ele tinha o melhor guarda-roupa de vestidos de Paris -e Madame de La Fayette o achava encantador.
Eu - É verdade, o abade de Choisy foi o maior francês do século, com a possível exceção do Chevalier d'Eon, que derrotava qualquer desafiante quando duelava de vestido. Mas grandeza supõe algo mais que transformismo -supõe uma transformação, uma auto-estilização. Um homem biológico pode se tornar uma mulher em gênero -ou, melhor ainda, aspirar à androginia, como nossos ídolos Michael Jackson, Mick Jagger, Boy George. Eles atingiram uma grandeza que não se imagina no sonho de d'Alembert, e o fizeram sem cair no sexismo ou no essencialismo.
Ele - Esses pecados soam terríveis. Eles têm alguma relação com molinismo e jansenismo, que causaram tanto estrago nos meus dias? Vocês têm tantos "ismos".
Eu - Precisávamos deles para fazer a virada linguística. Foi assim que aprendemos a construir discursivamente a realidade. Por exemplo: bastou denunciarmos com estridência o chauvinismo masculino para os homens pararem de olhar por debaixo dos vestidos das mulheres. As mulheres são livres.
Ele - Mas nada é mais doce que uma "belle gorge". Os sexos não são livres para se admirarem livremente?
Eu - Claro que não. Isso seria intrusivo; e pelo seu tom de voz, percebo que o senhor está me excluindo. Nós nos libertamos lendo Marcuse e rejeitando a tolerância repressiva que Voltaire impôs à Europa Ocidental na década de 1760. Então lemos Said e nos pusemos a libertar o resto do mundo varrendo o Orientalismo. Em 1993 conseguimos até impedir uma montagem do "Mahomet", de Voltaire, em Genebra.
Ele - Rousseau teria adorado isso. Mas ele jamais entendeu a liberdade, estava sempre confundindo-a com virtude. "E que tal ser livre para gozar as boas coisas da vida? -eu costumava lhe dizer- "Porventura crês que, por seres virtuoso, acabar-se-ão a cerveja e os bolos?"
Eu - Isso me parece familiar. O senhor leu isso em algum lugar? Genette, talvez? Ou Todorov?
Ele - Não. Shakespeare, "Noite de Reis", ato 2, cena 3.

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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