São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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lei das emendas vaginais

MARILENE FELINTO

Estuprar sistematicamente os homens: dominá-los, amarrá-los, enfileirá-los um ao lado do outro, abaixá-los (na posição subalterna), as pernas abertas, de costas para os outros homens que venham, brutamontes, e pratiquem o ato de violá-los sexualmente. Depois, por algum processo de "transferência" ou "regressão", digamos (algum desses processos de psicanálise), deixá-los amargar em laboratório, por longos dias, a gravidez involuntária das estupradas. Que sintam na carne a repulsa, a humilhação.
São cenas de sessão de psicodrama para se aplicar aos homens que aprovaram (e aos que pretendem) a proposta de emenda constitucional que veta o aborto à gravidez resultante de estupro, direito adquirido pelas brasileiras há 55 anos.
A proposta, aprovada em maio pela Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara dos Deputados, tem chances de ser aprovada agora pelo plenário da Câmara. São evangélicos (protestantes ou crentes) e católicos praticantes que encabeçam a corriola pelo veto ao aborto.
Um deputado (Philemon Rodrigues, PTB-MG) disse à Folha (conforme reportagem de Daniela Pinheiro, 02/11, pág. 3-7) que "o estupro é um acidente. E a pessoa tem que arcar com isso. Ninguém pode por ideologia ou opinião privar alguém do direito à vida."
Outro deputado (Severino Cavalcanti, PFL-PE, autor da emenda) disse que "a mulher deve levar adiante a gravidez na condição de 'depositária'", já que ela tem "o instinto materno, que é superior a tudo".
Estufas, silos, depósitos de sementes, chocadeiras fantasiadas de Virgem Maria, sem vontade própria nem livre-arbítrio. É assim que os homens da Comissão de Constituição e Justiça (formada por 11 homens e seis mulheres) enxergaram a mulher para tomar sua decisão: como galinhas, vacas ou cobras.
A proposta não é apenas obsoleta, reacionária e retrógrada. É o cúmulo da hipocrisia. Imagine se a filha do deputado ou do banqueiro vai carregar na barriga um feto originário de estupro. Imagine se o pai deputado não vai levá-la imediatamente à mais cara das clínicas da cidade, para raspar do seu útero de princesa o pedaço de carne indesejável. O filho será, sim, mais uma vez, da favelada.
Difícil acreditar sequer na possibilidade de uma emenda como essa vir a ser aprovada num país de costumes liberais como o Brasil, em pleno ano 2000. Ora, se deve haver qualquer lei que trate do corpo da mulher, que seja, no mínimo, elaborada por mulheres. O corpo é nosso, a vagina é nossa, quem deve decidir que pênis vai entrar ou sair dela, ou que feto vai crescer ou não no nosso útero somos nós. Alguma dúvida?
Esses homens brasileiros deviam ser tratados sob o chicote das feministas radicais da Europa. Vi em Berlim pela primeira vez um homem urinar sentado no vaso sanitário, igual às mulheres. Perguntei por que ele mijava sentado.
Rindo da minha surpresa, contou que aquilo era comum entre os homens alemães da nossa geração (ele tem 32 anos), obrigados a agir assim por uma rígida sequência de mães, irmãs, mulheres e namoradas que detestavam a molhação de mijo que os homens, ao urinar de pé, faziam nas bordas do vaso. Impressionante a eficácia do feminismo germânico. É preciso aplicá-lo ao psicodroma que vista de calcinhas e sutiãs no plenário da Câmara.

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