São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 1995
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O inferno das boas intenções

CELSO LODUCCA

Quando eu era adolescente, costumava participar do movimento estudantil contra a ditadura. E, como quase todos naqueles tempos, ouvia repetidamente músicas de alguma maneira políticas. A maioria de duvidoso gosto artístico, com a honrosa e óbvia exceção para o Chico Buarque.
E, de todas as maravilhosas músicas dele, uma me chamava atenção, não propriamente pela música mas pela poesia que era declamada dentro dela no mais melodioso português da matriz.
Era Fernando Pessoa. A propósito, obrigado Chico por ter escolhido essa poesia, fui ouvir um gênio, descobri outro. Dessa poesia, uma frase passou a martelar minha cabeça desde lá: "...é que há distância entre intenção e gesto". É como se o que a cabeça pensasse, a mão fosse incapaz de executar. Deus do céu! Como pode alguém querer de verdade e não fazer?
Por que a intenção não se transforma automaticamente em gesto? O que acontece dentro de nós que faz com que o pensamento vá perdendo a força antes de ser ato? Será que nós podemos compreender mais e melhor do que podemos realmente ser?
Para quem começou a ler um artigo sobre comunicação, você já deve estar pensando que é muita filosofia e poesia onde deveria ter coisas mais práticas. Mas o que é mais prático do que discutir o que somos verdadeiramente capazes de fazer? Ou, do ponto de vista de um publicitário, o que somos verdadeiramente capazes de convencer os outros a fazer?
No fundo, boa propaganda trata de colocarmos um ponto de vista sobre algo (produto, ideologia etc.) de uma maneira tão pertinente, encantadora e eficiente que possamos, primeiro provocar uma intenção positiva e depois, materializar um gesto (adesão, compra etc.) de quem está nos lendo, assistindo ou ouvindo.
Trata-se de seduzir você, conquistar sua simpatia, se possível, confiança e, por fim, ganhar um beijo. Ou mais. Para isso, nós, humanos, usamos truques. E truque não significa necessariamente fazer alguma coisa fora das regras.
A paradinha que o Pelé dava quando ia bater pênalti era um truque. E como funcionava! Talvez hoje nem funcione mais. Os goleiros já conhecem o jeito, podem ter ficado resistentes a esse remédio, como as bactérias aos antibióticos. O mesmo acontece ao seu público alvo (consumidores, empresas, eleitores, leitores etc.). Ele vai conhecendo mais profundamente os mecanismos da comunicação, mesmo que inconscientemente, a medida que vai sendo mais impactado por ela. Vai ficando imune. Isso não quer dizer que você deva aumentar a dose, mas só ter sensibilidade e criatividade para descobrir novos e eficientes truques.
Hoje, o grande truque é procurar ser ao máximo aquilo que se diz que é. Por quê? Quando alguém compra algum produto/idéia/serviço espera encontrar o que lhe prometeram. Caso contrário, troca de produto (são tantas opções para tudo!), vira infiel. E fidelidade a sua marca, sua empresa, seu produto vale uma fortuna. E fortunas não se jogam fora assim.
Os consumidores querem ser seduzidos sim, estão mesmo buscando sonhos e ilusões, o que não quer dizer que aceitem mais a mesma lengalenga. A maturidade do mercado consumidor brasileiro, somada ao desejo de longevidade dos anunciantes e suas marcas têm exigido que as agências de propaganda sejam mais criativas, como um todo, para que encontrem formas de manter a atração e a diferenciação num mundo cada vez mais igual.
E não basta querer ser, ter a intenção de ser, nem fazer o discurso como se fosse. As agências precisam aproximar as intenções dos gestos, executar com a mão o que a cabeça pensa, sob pena de perdê-la. Como dizia minha avó Ignez, que deve estar no céu: "De boas intenções, o inferno está cheio!".

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