São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A reforma da Previdência no Pacífico Sul

JOÃO SAYAD

A vida nas ilhas Uah, a sudoeste do atol de Mururoa, onde Chirac realizou experimentos atômicos, era organizada de uma forma francesa e matemática. A população era absolutamente estável: há muitos séculos eram 3.000 habitantes, pertencentes à tribo dos Uah-hua, com uma esperança média de vida de 75 anos. Brincam e estudam até os 25 anos, trabalham dos 25 aos 50 anos e vivem como sábios ou sacerdotes os 25 anos restantes de suas vidas.
Antes dos experimentos de Chirac, a vida econômica era a mais simples possível. As ilhas satisfazem completamente nossos sonhos de paraíso das ilhas do Pacífico Sul. Produzem apenas um tubérculo exótico, "manioc canabis", cuja raiz chamam vulgarmente de mandioca. A produtividade de cada indígena é de três mandiocas por dia por hectare. E este tipo de mandioca contém todas as calorias e proteínas que cada habitante da ilha precisa ingerir por dia, sem engordar. Só é possível consumir uma mandioca por dia, geralmente na hora do almoço. Mais do que uma, além de desnecessário, causa certo mal-estar digestivo, perturba a visão e cria obesidade. A produção diária dos mil Uah-hua, que compõem a população economicamente ativa da ilha, era de 3.000 mandiocas por dia, exatamente suficiente para alimentar a si mesmos, mil crianças e jovens e os mil velhos aposentados. A mandioca especial produzida pela ilha não se estraga se for guardada, mas atrai uma mosquinha inconveniente, que acaba atrapalhando a vida de toda a ilha.
Os experimentos atômicos dos franceses tiveram um efeito surpreendente sobre a vida da ilha: dobrou a produtividade da mandioca, que passou a seis mandiocas por índio por hectare por dia e ampliou a esperança média de vida, que hoje é de cem anos. A população da ilha passou a 4.000 habitantes: mil crianças e jovens, mil índios entre 25 e 50 anos, que compõem a população economicamente ativa, e 2.000 índios aposentados com mais de 50 anos. Hoje em dia a produção potencial de mandiocas é de 6.000 unidades diárias. Uma equipe de biólogos e agrônomos da ONU continua estudando o fenômeno sem encontrar explicação plausível.
Economistas foram chamados, porque o desemprego tornou-se um problema latente na ilha: a produção potencial diária de 6.000 mandiocas é excessiva. A população da ilha consome 4.000, sendo 1.000 para os índios trabalhadores, 1.000 para crianças e jovens e 2.000 para os "velhos" acima de 50 anos, aposentados. Sobrariam 2.000 mandiocas por dia, que não podem ser jogadas no mar por causa da vigilância do Greenpeace, que teme os efeitos da mandioca "atômica" sobre a vida marinha, e nem podem ser estocadas por causa das mosquinhas que atraem.
Assim, hoje apenas 667 índios trabalham todos os dias nas ilhas dos Uah-hua, que passaram a ter uma taxa de desemprego de 33% da população economicamente ativa. Os trabalhadores empregados, por outro lado, reclamam porque de cada seis mandiocas que produzem, uma é para o sustento das crianças e jovens de suas famílias, 0,66 para consumo próprio dos índios empregados, e 2,33 mandiocas são recolhidas pelos chefes tribais para alimentar os desempregados e pagar as aposentadorias.
A carga tributária ficou muito alta por causa do desemprego. E as contribuições para a previdência social, se assim pudéssemos chamar, ficaram muito altas porque a população dos Uah-hua ficou mais velha.
A ONU está propondo duas soluções: está negociando com o Greenpeace para permitir que se joguem mandiocas no mar e, assim, se possa aumentar a produção e o emprego.
No tocante à aposentadoria, está propondo, juntamente com antropólogos e assistentes sociais, que os nativos aceitem uma idade maior de aposentadoria, de 50 para 60 anos. Assim, a população economicamente ativa aumentaria e a carga da previdência social seria menor.
Os chefes tribais reagem a essas propostas. Argumentam que tudo seria muito mais fácil se todos estudassem mais tempo, trabalhassem menos e se aposentassem mais cedo, usufruindo em lazer o misterioso aumento de produtividade que caiu do céu como uma bomba atômica.
Reporto sobre as pequenas e longínquas ilhas do Pacífico Sul, localizadas na latitude 20 graus sul e na longitude que começamos a contar as horas do dia seguinte, porque as soluções de Uah-hua podem iluminar alguns problemas que vários países estão enfrentando atualmente.
O mundo inteiro está ficando mais velho, graças ao sucesso da medicina, e a produtividade tem aumentado muito, graças ao sucesso do capitalismo. As ilhas e países do Oriente, como Taiwan, Coréia e Filipinas, que tanto inspiram os economistas de hoje, poderiam mais uma vez trazer uma nova solução. O problema da Previdência Social e do desemprego americano, japonês, chileno, argentino e brasileiro também tem uma raiz comum: somos mais produtivos e vivemos mais tempo. A solução óbvia seria trabalhar menos.
Entretanto, assim como os Uah-hua dificilmente aceitarão a proposta dos economistas da ONU, nós aqui dificilmente poderíamos aceitar a proposta dos Uah-hua. Como seria possível trabalhar menos? Faltam muitos anos e muita mandioca será jogada no mar antes que a lógica francesa das ilhas do Pacífico Sul possa vencer em nossas paragens.

Texto Anterior: Palestra vai debater a globalização na moda
Próximo Texto: O salto do Tigre
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.