São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 1995
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Mostra revela o sexo na superfície da arte

VINICIUS TORRES FREIRE
DE PARIS

Ver o sexo na arte é a intenção manifesta do trabalho dos curadores da exposição "Femininomasculino - O sexo da arte", que o Centro Georges Pompidou de Paris (conhecido como Beaubourg) inaugurou no final de outubro e mostra até 12 de fevereiro de 96.
Na mostra, o visitante encontrará arte -Picassos inéditos, todo o cânone da arte moderna e uma seleção de contemporâneos. O visitante verá sexos também -pênis, vaginas e cópulas, ou quase, são motivos exaustivamente tratados.
Mas o visitante verá no Beaubourg sobretudo uma perversão, ou mais um exemplo dela -curadores tarados violentando obras. A intimidade de cada objeto é violada, porque ignorada -sua individualidade é esquecida na vala comum do "tema" da mostra.
Marie-Laure Bernadac e Bernard Marcadé, os curadores, reuniram mais de 400 obras de artistas do começo do século aos dias de hoje para mostrar que o sexo "além de simples assunto (motivo) é parte constituinte do próprio processo da arte."
É verdade. Mas se pode perguntar a Bernadac e Marcadé se o fato de enxergarmos uma cópula em "Figuras à Beira do Mar" de Picasso diz algo radicalmente diferente ou minimamente significativo sobre o trabalho da sua obra. E assim também com os torsos de Brancusi ou as telas fendidas de Jasper Johns ou de Lucio Fontana.
"Femininomasculino", que é de resto uma exposição brilhantemente montada e extraordinariamente rica (mais de 170 museus e colecionadores requisitados), parece querer ver sexo e sexos (órgãos, atos e gêneros) na mais externa superfície da arte. No que ela aparentemente mostra -mas jamais no modo como ela o mostra. Sublimação parece ser um palavrão para os curadores franceses.
Mas seria ingenuidade acreditar que a exposição é movida apenas por uma ingênua atração pela superfície colorida e cênica das representações dos sexos. Há na mostra uma espécie de "revisão" da história da arte moderna do ponto de vista da desnaturalização, atrito e disputa dos gêneros.
"Femininomasculino" não é uma mostra cronológica. Ao lado de um Picasso onde os expositores veêm uma tradicional relação sexual entre homem e mulher, há dois objetos de Cathy de Monchaux -"Fragilidade Perigosa".
Num deles, algo que sugere tanto uma vagina ou torso feminino em tecido rosa é coberto por um "espartilho" (ou cinto de castidade?) composto de sugestões de arames farpados e presilhas de metal perigosamente pontiagudas. Num ensaio que abre o catálogo da mostra, Marcadé supera a questão primária da "essência" de gênero da arte, seja feminina, ou mesmo homossexual, como já foi reivindicada por uma simplista crítica militante, mas concede a esta reivindicação o caráter de uma "boa guerra do final do século."
Motivo: ela, a boa guerra, pelo menos coloca em discussão oposições até então desvalorizadas na apreciação da arte (masculino/feminino, homo/hetero).
Ou seja, é recuperada de certa maneira a idéia desde sempre decrépita do engajamento artístico, com uma revalorização da representação e do "conteúdo".
"Femininomasculino" é a enciclopédia da produção e do pensamento sobre os produtos de uma era de fragmentação e individualismo subjetivo obssessivo, em que para a arte, ou melhor, para a crítica, qualquer questão pública deixou de ter sentido.
Uma frase de Karl Kraus citada num "Glossário Orientado" no final do catálogo da mostra, diz que "não há ser mais infeliz sob o sol do que um fetichista que suspira de desejo por uma botina e deve se contentar com uma mulher inteira". Os curadores de "Femininomasculino" tinham elaboradas botinas ao alcance dos olhos e só viram mulheres inteiras.

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