São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 1995
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Flamengo mostra como comprar infelicidade

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Melhor ataque do mundo/ melhor ataque do mundo/ pára um pouquinho, descansa um pouquinho/ Romário, Sávio, Edmundo.
O povo não perdoa. A equipe dos sonhos desmoronou. Restam gritos na arquibancada, severos olhares, suadas camisas rubro-negras. O Flamengo gastou milhões de dólares. Fracassou. E agora?
Troquem o técnico, xinguem a mãe do presidente, façam despachos nas esquinas da Gávea. Mas por favor não se iludam: todos embarcaram na canoa dos milhões. Parecia tão simples: quanto mais gastar, melhor será o time.
No entanto, o buraco é mais embaixo. O sr. Thierry Breton, por exemplo, não é Flamengo mas também está de ressaca. Publicou um livro para chorar suas mágoas. Diretor do projeto Futuroscope, assessor de Miterrand para novas tecnologias, ele achava que bastava dotar o país de computadores para tudo melhorar. Agora, depois de alguns bilhões gastos, ele se pergunta: valeu a pena, será que o sonho "high tech" nos trouxe mesmo tudo o que prometia?
Thierry Breton decidiu também parar um pouquinho, descansar um pouquinho. Sua geração está um pouco perplexa, de ressaca como a torcida do Flamengo. Romário, Sávio, Edmundo.
Computadores, ecologia, espiritualidade, trabalho em casa, tinha tudo para dar certo e a economia do invisível suplantaria lentamente a áspera fabricação do concreto.
Amargurado como um torcedor do Flamengo pegando o trem do subúrbio, Thierry Breton, à sua maneira, sonha com o time do Goiás, que não gastou quase nada e tirou o melhor efeito dos trocados que investiu.
Valeu a pena?, se pergunta o torcedor Breton, que era fanático pelo time da terceira onda. Em muitas empresas, a informatização não representou um tal aumento de produtividade; em milhares de casas, o computador tornou-se apenas um gadget dispendioso:
"O nível de emprego recuou e a produtividade nacional estagnou", lamenta o francês, com o mesmo olhar desolado de um flamenguista: o ataque está lá, mas é apenas um fantasma daquilo que sonhei.
Thierry Breton não insulta o técnico, nem xinga o presidente do clube. Não ameaça ir para o interior, morar numa casa de madeira e torcer por um time de várzea. Ele conclui que a chamada revolução digital precisa ser revista, pois corre o risco de apenas aumentar o consumo supérfluo da sociedade sem resolver os seus problemas.
A crise de Breton traz consequências para nós: dotar o país de mais de 12 milhões de telefones é um sinal de progresso, mas o que aconteceria se mais alguns milhões de linhas fossem utilizados para jogar conversa fora, drama expresso no poema de Drummond ("Ao telefone, perdeste muito tempo de semear")?
Enquanto isto, o ciberguru Nicholas Negroponte já admite a implantação de chips no corpo humano. No seu próprio corpo. Antes, ainda hesitava, mas agora entrou numa de que não há mais limites.
Mais longe foi um tal de Neil Gershenfeld, que quer editar o genoma humano, não implantando mas alterando com os chips o próprio código genético.
Tudo bem. Mas há chances de repetir os erros do ataque do Flamengo. Os cibergurus ganham milhões de dólares para tocar seus "midia-labs" e precisam produzir não mais ataques do sonho, mas sonhos de um ser humano com chips na veia.
Diante das bandeiras arriadas, frente a frente com a realidade francesa, Breton pede uma trégua na guerra entre antigos e modernos:
"Não se deve mais debater no abstrato. Podemos amar, ao mesmo tempo, a terra e os satélites, os velhos ofícios e a tecnologia de informação".
Pena que anos antes de trilhar a aventura "high tech", Breton não tenha lido Jean Jacques Salomon e André Lebeau. Num livro sobre a miragem do desenvolvimento, afirmavam tudo isso com a maior clareza. Em 88, já mandavam mil recados:
"Idéias mistificadoras: é inexato que um esforço de pesquisa fundamental seja indispensável ao desenvolvimento; é inexato que a tecnologia mais avançada responde às necessidades da maioria dos países subdesenvolvidos; é inexato que a revolução da informação seja um atalho para tornar a economia mais produtiva...".
Mesmo com tanto pé atrás, continua-se sonhando com um ataque perfeito, reduzido a um ponta-de-lança que sacode o pau para a arquibancada e gurus prontos para se receber uma transfusão mineral e ajuntar ao nome a indicação de modelo: Nicholas Negroponte Pentium, Neil 486.
Navegar entre os deslumbrados da "high tech" e os profetas do apocalipse sempre dá trabalho. O livro de Breton, "O Fim de uma Ilusão" ("La Fin des Illusions", Ed. Plon), é a prova de que mais um está buscando o caminho do meio. Os torcedores rubro-negros ainda podem gritar: "Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer". E nós, que amávamos tanto a revolução digital? Ainda temos tempo de virar o jogo?

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