São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 1995
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Utopia

DARCY RIBEIRO

Há gente rejeitando qualquer pensamento utópico ou meramente patriótico. O máximo que admitem é a utopiazinha egoísta de enricar ou ajeitar uma sinecura de que tirem proveito. Eles, por si mesmos, não representam nada, mas dando voz a grandes interesses antibrasileiros, que alcançam repercussão e apoio em toda a mídia, fazem a cabeça da classe média mais ingênua e influenciam sobre a juventude desinformada.
Vejo, apreensivo, essa onda avolumar-se e as novas gerações, bombardeadas por ela, sendo coagidas a pensar que patriotismo e nacionalismo são bestagens ou coisa arcaica de mau gosto. Ninguém lhes diz que os povos que deram certo são extremadamente patrióticos. Os japoneses chegam a ser fanáticos, os alemães também e os norte-americanos, por igual, morrem de amor e de orgulho por sua pátria e por seu jeito de viver.
Só a nós caberia deixar dessas velhas manias, nos desarmar ideologicamente para que se complete a desapropriação do Brasil. Os ricos de tripa à forra já vivem mais lá fora que aqui dentro, com medo da violência desencadeada pela política econômica que eles ditaram. Os pobres acham que desempregado, faminto e doente não tem pátria nenhuma nesse Brasil de terras monopolizadas, de indústria estrangeirada, de governo falido, de burocratas irresponsáveis, de políticos corruptos, de justiça injusta.
Rompeu-se o nervo cívico até da juventude, que ontem enfrentava a guerra impossível de vencer pelas armas contra o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, para derrubar a ditadura regressiva e repressiva que elas impuseram. Rompida sua lesão patriótica, muitos deles desbundaram, outros tantos caíram na droga e os mais aí estão, perplexos, em busca de uma ideologia que dê sentido a suas vidas de brasileiros. Os últimos escândalos da história nacional desencadearam neles começos de insurgência com as caras pintadas para protestar contra tanta ladroeira, pouca vergonha e corrupção nos arraiais governamentais.
Essa postura de jovens desenganados e abúlicos, que apenas começam a despertar para si e para o Brasil, é a herança mais perversa da ditadura militar. É preciso frisar, porém, que não é culpa só deles. É funda culpa nossa, da geração de seus pais e avós. Que fizemos nós para não lhes entregar um Brasil tão miserável, desorganizado e corrupto? Na verdade, foi uma reportagem colhida por uma revista de um irmão ciumento que derrubou o presidente da República. A cortina de fumaça lançada por um tecnocrata, que havia feito trucidar sua mulher, foi o que nos apontou os anões do Congresso. Não é de morrer de vergonha?
Estamos, pois, nós da geração mais velha, em carência, que precisamos ter a coragem de superar, pondo a boca no mundo em defesa do Brasil Utópico que pode ser, que há de ser. Um Brasil de economia reordenada, para que todos tenham o sagrado direito a um emprego, para que todo lavrador, com um mínimo de capacidade empresarial, tenha seu pedaço de terra para plantar milho e mandioca a fim de sustentar a família e recuperar sua dignidade.
Tudo mais de bom que uma nação potencialmente próspera como a nossa pode dar decorrerá desses primeiros passos. Eles jamais serão dados, porém, enquanto o Brasil for regido por um bando de tecnocratas bisonhos, socialmente irresponsáveis, indiferentes à nossa pátria, dispostos a entregar ainda mais nossa economia ao mercado global. O mesmo que há séculos vem sangrando o povo brasileiro.

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