São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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"A hora da verdade

ROBERTO CAMPOS

A hora da verdade
"Falar do governo é tão bom que não é justo que usem desse privilégio só os inimigos."
(Milton Campos)

Já é hoje praticamente impossível que cheguem a ser aprovadas pelo Congresso Nacional, ainda neste ano, as reformas tributária, da administração, da Previdência, a Contribuição sobre as Transações Financeiras, destinada à Saúde, e parece difícil que passe em tempo no Senado o Fundo Social de Emergência.
No entanto, este Congresso trabalhou com boa disposição, aprovando as emendas constitucionais que quebraram monopólios estatais, inclusive em matéria de petróleo, e asseguraram a igualdade de tratamento de empresas de capital nacional ou estrangeiro.
O fato, porém, é que as reformas se atrasaram pelo caminho. Isso produz dois efeitos negativos: aumenta o coeficiente de risco da economia e agrava o custo social inerente a qualquer política de estabilização monetária. Não se trata de alarmismo e sim de realismo. Na frente externa, o país vai bem, com bastante sucesso na atração de capitais financeiros externos. Até outubro foram US$ 32,2 bilhões, quase tanto quanto em todo o ano passado. Pode-se contar com uns US$ 9 bilhões líquidos de capitais de curto prazo, que contribuirão para a cobertura do déficit em conta corrente, da ordem de uns US$ 17 bilhões, sem grave perda de reservas. É um desempenho que reflete mais otimismo em relação ao Brasil do que, digamos, em relação à Argentina e ao México, apesar de esses países terem feito reajustes mais duros.
No tocante aos monopólios estatais, foi ganha a batalha ideológica, porém ainda não a operacional. A tríplice coalizão dos piratas corporativistas, dos socialistas residuais e dos nacionalistas arcaicos procurará, na legislação infraconstitucional, restringir os efeitos da flexibilização.
Uma das técnicas para isso será, no caso do petróleo, a preservação para a Petrossauro das bacias onde opera, nalgumas das quais tem investimentos meramente simbólicos. E continua a aumentar nossa dívida externa, financiando-se no exterior, a fim de evitar que capitais privados a substituam na construção de dutos e refinarias.
Revolta-me que a Petrossauro insista em reter controle majoritário do gasoduto Brasil-Bolívia, projeto que sabotou por 30 anos, desde que foi apresentado ao gabinete do presidente Castello Branco por mim e pelo ministro de Minas, Mauro Thibau, em julho de 1965. A distribuição espacial da indústria petroquímica e de fertilizantes teria sido muito mais racional e a geoeconomia do Centro-Oeste muito mais saudável, não fosse a cretinice monopolista de então!
Uma outra técnica dos estatólatras é a das "parcerias", pelas quais Petrossauro e Telessauro buscam cooptar capitais privados, preservando seu controle acionário como fonte de poder e mordomias. É simples estatização da poupança privada e deixa irresoluta a questão crucial da ineficiência gerencial. Mesmo quando, sob o impacto da falência do Estado, parece surgir um "novo realismo", os avatares estatizantes sobrevivem.
No Rio Grande do Sul, altamente endividado, com precária infra-estrutura, o governador Britto resigna-se magnanimamente a vender 49% das empresas estaduais de telefonia e eletricidade. Tratando-se de empresas pessimamente geridas, especialmente a de eletricidade (a qual tem déficits sistemáticos e paga 17 salários), só capitalistas filantropos ou temerários aplicarão seu dinheiro nesta farsa pseudoprivatizante.
Quem merece elogios é o governador do Rio, Marcello Alencar, que pretende privatizar em seis meses a empresa elétrica estadual -Cerj-, enquanto o governo federal rumina há mais de três anos a privatização da Light!
De outro lado, a reforma constitucional de flexibilização de cabotagem nada flexibilizou, pois a proposta de lei regulamentadora mantém vedações protecionistas, sob o surrado chavão da segurança nacional, como se uma cabotagem agonizante e não-competitiva fortalecesse o país!
O mau desempenho das contas públicas pode ser fatal. A situação está bem pior do que no ano passado, pelo descontrole dos Estados, municípios e empresas estatais e pelo aumento dos gastos com o funcionalismo federal. Apesar de um crescimento sem precedentes na arrecadação, muito além de suas médias recentes, para cerca de 31% do PIB, a perspectiva é de déficit operacional de uns 3,3%.
Os especialistas sabiam que a passagem de uma inflação alta para uma relativa estabilidade acabaria com o "imposto inflacionário" oculto, graças ao qual os governos e empresas públicas, distribuindo calotes por credores e assalariados, vinham "empurrando com a barriga".
O equilíbrio econômico do país vai depender de reformas que "zerem" as contas públicas e diminuam o "custo Brasil", que estrangula a competitividade do nosso setor produtivo. O governo ainda não achou ânimo de atacar de frente os problemas dos portos, da modernização da legislação trabalhista e da Justiça do Trabalho e da liberdade sindical. Muito do desemprego resulta hoje da rigidez do mercado de trabalho.
A hora da verdade está chegando para o sistema financeiro. O setor bancário, inchado durante os anos de inflação alta e com mais de 250 bancos, 18 mil agências e 11 mil postos de atendimento bancário, tem hoje, provavelmente, o triplo do tamanho economicamente justificável. A MP baixada pelo governo para facilitar o reajuste do setor por incorporações e fusões -embora tardia e com imperfeições evitáveis- foi recebida com uma tempestade de equívocos, em parte devidos ao ambiente de "caça ao escândalo", que inventa factóides quando não tem fatos.
Tais colocações refletem um perigoso nível de desinformação técnica. Em nenhuma economia moderna é imaginável pensar-se em "castigar" o sistema financeiro, por mais que os bancos sejam objeto de desafeição. E isso pela simples razão de que o setor financeiro exerce na economia um papel sistêmico único: o de irrigar todas as atividades econômicas, facilitar as transações, o funcionamento do mecanismo dos preços, a formação e utilização produtiva da poupança e orientar as expectativas dos agentes econômicos. Esquecer isso seria suicídio.
Como é verdade para qualquer agente racional, econômico ou não, os investidores externos que continuam aplicando no país guiam-se pelas próprias informadas perspectivas. No momento, elas são "condicionalmente" favoráveis ao Brasil. O que não é pouco, porque nos tempos da moratória, da Constituinte, da reserva de mercado, da SEI e "otras cositas más, elas nos eram "incondicionalmente" desfavoráveis.
O país começa a ser levado a sério -o primeiro passo do desenvolvimento. Reconhece-se lá fora que deixamos de ser a caricatura terceiro-mundista latino-americana de outros tempos. Nas linhas gerais, o programa do governo está dentro das linhas de pensamento pós-implosão do socialismo. Mas as reformas têm de ser feitas, não conversadas. Na dura escola da realidade não se dão prêmios por boas intenções.

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