São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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O protocolo de uma traição

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"A Estrada de Salamanca", de Antenor Pimenta, é um livro estranho, diferente, fora da moda. Os temas centrais são antiquados; o estilo é elegante, castiço; escrito por um brasileiro, nada tem a ver com o Brasil. E é justamente esse conjunto de elementos que o torna bem-vindo, no final de um século que abriga em si outros séculos, como já se disse, numa convivência tão horizontalmente ampla quanto bizarra.
Tudo se passa em torno de Segóvia, Madri e Salamanca, na região central da Espanha, em um período não determinado claramente mas que se supõe ser o início deste século.
Juan e Fernando, habitantes de Segóvia, amigos de infância, amam desde sempre a mesma mulher, Isabel. Em nome de sua amizade, fazem um "contrato": nenhum dos dois se casará com ela. Mas Isabel não está na parada e acaba optando por Fernando, que, sob o selo da traição, admite o casamento. Tempos depois, desafiado por Juan, ele perde no jogo e tem de cumprir o acertado: afastar-se por 30 anos de Isabel, morando em outra cidade.
O livro retrata esse exílio, bem como o que ocorre em Segóvia durante as três décadas, culminando com o retorno de Fernando à cidade natal. Numa Espanha católica, povoada por frades safados, abades ardilosos e curas decadentes, estâncias, mulheres de moura sensualidade, bodegas, ciganos e embalses, estão em jogo a honra, a amizade e o amor.
A amizade, aqui, é entendida tal qual a classificou Marcel Proust em certo parágrafo do tomo "A Sombra das Raparigas em Flor", isto é, como a abdicação de si mesmo, uma espécie de aniquilação dos desejos individuais. A honra, por sua parte, é o trunfo maior da moralidade; e o amor, mesmo funcionando como motor de tudo, subordina-se a uma e a outra.
Pimenta, mineiro, 35 anos, tece "A Estrada de Salamanca" com extrema firmeza e fina ironia, num linguajar charmoso mas rígido, cheio de requebros mas coerente e harmônico. Leia a seguinte descrição:
"As mãos trêmulas de Fernando abrem a janela do quarto. O sol se reflete na lâmina confrangida daquelas águas verdes. Mais tarde, ele irá para a biblioteca, manuseará os livros, códices, anotará frases, e se certificará de que o seu coração mal verruma as grades do peito. A imagem de Isabel rodeia-lhe como algas a uma cidade submersa".
Em outra parte, cheio de ironia, o narrador afirma:
"Miguelito cultivava uma unha enorme no mindinho. Às vezes, com muita delicadeza, ele cofiava a réstia de bigode com aquela unha. Ou então ele erguia a mão, afastando o meiminho dos outros dedos e, em seguida, introduzia-o no nariz. Um prazer indescritível, de franca prosperidade, abrandava seu mundo."
Mãos de ferro controlam todo o desenrolar do romance. Pimenta trabalha corretamente o jogo dos tempos verbais, por exemplo, narrando às vezes com o uso do passado, às vezes no presente, sem que o leitor se dê conta da alteração.
Com a naturalidade de um autor maduro, mistura expressões banais e ditos populares a um vocabulário belo e sofisticado, e ainda -arte só cultivada pelos bons contadores- introduz aqui e ali, sutilmente, ícones de momentos já narrados, a fim de que o leitor nunca se perca.
À página 287, referindo-se à técnica de dom Rosalbo Crespo, personagem contador de casos, o próprio autor nos explica indiretamente o seu método: "...a magia branca da criação insiste que os livros são florestas, os capítulos que os permeiam, frondosas árvores, os parágrafos, galhos, e as palavras, substância imponderável, as folhas. Em segundo lugar, a responsabilidade da seiva que penetra os umbres da madeira cabe à secreta poesia que escorre nos laivos das frases". Sem comentários.

A OBRA
A Estrada de Salamanca, de Antenor Pimenta. 304 págs. Editora Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, Rio de Janeiro, CEP 20011-040, tel. 021/507-2000). R$ 27,50

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