São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Sussurros da grande alma

JOÃO PEDRO MENDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A batalha de Queronéia (338 a.C.) marca o fim da hegemonia política de Atenas, logo seguido pelo declínio de outras cidades helênicas. A história descreve mais uma curva e enceta um novo período denominado helenista ou alexandrino. Difunde-se por todo o Mediterrâneo oriental a cultura grega, que aglutina e fecunda as culturas regionais, fornecendo-lhes o lastro comum do universalismo que Roma vai centralizar e conduzir nos séculos futuros.
O período helenista cede ao greco-romano. O mundo muda de mãos e de espírito. A conquista do Egito abre ao novo poder centralizador o espaço expandido por Alexandre além das margens do Indo.
Neste contexto emergem doutrinas filosóficas e religiosas como tentativas de resposta a esse tempo de crise, ou antes, prevalecem em tais doutrinas certas correntes com notação mais ética e normativa do que propriamente especulativa ou metafísica. Uma delas é o estoicismo, que vai perdurar por mais de 500 anos (330 a.C. - 200 d.C.), podendo-se dizer que sua influência marcou fundo a civilização ocidental e sobreviveu em vários aspectos até hoje. Caracteriza esse tempo de crise um forte individualismo de perspectiva cosmopolita, sincrética e mística, não alheio aos contatos com outros povos, usos, costumes, gostos e crenças.
Nos séculos 2 e 1 a.C, verifica-se entre os principais filósofos estóicos (Panécio de Rodes e Possidônio de Apameia) uma abertura a outras escolas, a par de forte propensão ao sincretismo e universalidade de interesses intelectuais, com acento na conduta moral e na inquietação com os problemas existenciais. Nos dois séculos seguintes, aumenta a tendência à reflexão sobre questões éticas e religiosas com vistas a uma prática de vida. É o período do estoicismo dito novo ou imperial, que fascina filósofos, escravos e políticos, como Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Muitos pensadores de todos os tempos e de outras formações foram permeáveis a essas influências humanistas, ascéticas e místicas como o neoplatônico Plotino, inúmeros Padres da Igreja, Montaigne, Justo Lípsio, G. du Vair, Descartes, Pascal, Kant, Nietzsche, Alain, Sartre.
É manifesta ainda em nossos dias a convalidação de alguns aspectos doutrinários do estoicismo, como a conjugação do individualismo com o espírito de solidariedade universal. Admitindo uma lei cósmica igual para todos, da qual deriva o princípio da dignidade humana, segue-se naturalmente o princípio da igualdade e semelhança de direitos entre todos os indivíduos, bem como o princípio de unidade do gênero humano sob o império da lei da Natureza e da Providência.
Marco Aurélio desde jovem foi seduzido pela retórica, arte de bem dizer para convencer. Mas sua índole o direcionou em definitivo para a arte do pensamento, ou seja, para a vivência da doutrina estóica. Desta retém apenas, como é característico do período imperial, a vertente moral, em detrimento da física e da lógica.
Filósofos e retores, desde os embates entre Platão e os sofistas, continuavam disputando a condução dos espíritos. A antinomia verdade/opinião, que já vinha de Parmênides, era apresentada em competição ao jovem escolar, que evoca reconhecido no livro um das "Meditações" parentes, amigos e mestres, de quem recebeu apelos e contribuições à sua formação.
Além das "Epístolas" referidas e de fragmentos de discursos oficiais, Marco Aurélio escreveu "para si próprio a pequena obra que o tornou conhecido como filósofo. Trata-se de notas pessoais de reflexão, tomadas ao sabor do acaso e das circunstâncias do dia-a-dia, quase sempre durante campanhas militares nos confins do império, sobretudo nos últimos anos de vida. Ao lado de citações extraídas de moralistas e poetas gregos, contém máximas, exortações e censuras que faz a si mesmo. Em comovente exame de consciência, cuja "técnica" recolheu do pitagorismo, revela-nos sua alma delicada e modesta, ansiosa de perfeição e impregnada de doçura e bondade, num tom "sincero, isto é, "sem mistura", "sem mácula", "não alterado nem corrompido", conforme a etimologia. Houve quem aproximasse suas reflexões metafóricas das de Pascal. A censura da vaidade da glória, verbi gratia, está no imperador que captura os sármatas como a aranha captura a mosca; o homem que vocifera contra o destino é o leilão que importuna com seus grunhidos ao ser levado ao sacrifício; o sábio é o promontório que resiste ao ataque furibundo das ondas; a virtude é a lamparina cuja chama arde até se extinguir; a morte, enfim, é a azeitona madura que se desprende do galho. São pérolas como estas que fazem a glória de um pensador.
A edição de "Meditações" -ou "Pensamentos"- ora dada à estampa numa competente e esmerada tradução de William Li, já experimentado em tarefas como "Sobre a Brevidade da Vida", de Sêneca, e outras, pode suscitar a pergunta pelo sentido de "recuperar" para o público brasileiro textos de autores gregos e romanos que não primam pela originalidade filosófica nem pelo fundamento científico de suas teorias.
Com A. Puech, gostaríamos de sintetizar duas espécies de razões de este livrinho ainda exercer hoje em dia tão profunda influência sobre os seus afortunados leitores. Umas provêm da doutrina, e outras do próprio autor. Quanto às primeiras, não nos interessam mais nem a lógica nem a física; a piedade ainda comove pelo tom, mas não satisfaz por nos parecer basear-se num equívoco.
Contudo há a moral, que mantém para muitos de nós sua real eficácia. Seu desprendimento, sua nobreza, a nitidez de algumas das razões em que assenta explicam e justificam sua ação. Mas tem limites, apesar de admirável por nos robustecer a capacidade de resistência, nos dar um abrigo na desgraça e uma defesa contra as tentações, por nos instigar a cumprir as obrigações que a nossa condição nos impõe, quer em relação a nós mesmos quer aos outros, pois não favorece bastantemente a iniciativa, não contribui o suficiente para semear dentro de nós ou fazer levedar o germe da ação espontânea, tornando-a por sua vez criadora de novas ações benemerentes.
Quanto às segundas, talvez o sucesso do livrinho dependa em maior proporção do autor que da doutrina. Na sua interpretação, o estoicismo revela um sortilégio que nenhum outro filósofo estóico soube transmitir, porque não é propriamente a doutrina ensinada que nos atinge, e sim a doutrina vivida. "Os dogmas vivem" por encarnarem naquele que os professa, tornando-se para ele um princípio de vida. E quem sente o fascínio de uma vida interior autêntica identifica-se naturalmente com o pulsar de uma alma grande que lhe sussurra na maior sinceridade.

A OBRA
Meditações, de Marco Aurélio. Tradução e introdução de William Li. 120 págs. Editora Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, São Paulo, CEP 01426-001, tel. 011/852-8284). R$ 18,00

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