São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Da vida recatada ao cabaré

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O primeiro romance de uma profissional do cinema e da televisão desperta, logo de início, a curiosidade inevitável: se o texto herdou vícios dos outros gêneros. A profissional em questão é a roteirista e autora de telenovelas Rita Buzzar, 35, co-autora de trabalhos como "Ana Raio e Zé Trovão" (Manchete) e "Sangue do Meu Sangue" (SBT).
Narrado em primeira pessoa, o romance conta a história da transformação da protagonista, Magnólia, de recatada professora de canto numa escola religiosa, em exuberante cantora de cabaré.
Órfã de tradicional família paulista plantadora de café, Magnólia é uma enjeitada que carrega a sina de ter sobrevivido à mãe, morta por ocasião de seu parto. Criada por uma tia, na década de 20, cresce reprimida, solteirona à espera da liberação da herança que lhe pague o dote do casamento.
O café e os anos 20 são mero pano de fundo na ambientação deste que não é um romance de época. É antes o romance de uma microrrevolução feminina: como não existia herança nem houve casamento, Magnólia é acidentalmente levada a experimentar a metamorfose capaz de realizar seus desejos mais recônditos: liberdade, auto-estima, sexo, amor.
"Que estranho destino esse das mulheres da minha família... Morrer para não morrer. Como tia Evangelina, como minha mãe, como eu", diz a protagonista-narradora sobre sua autolibertação.
Magnólia é uma espécie de bela adormecida que desperta não com o beijo do príncipe, mas banhada em seu próprio sangue. "Meu sangue", ela descreve. "Naqueles meus 30 anos, sempre corria sangue de minhas narinas quando ficava nervosa.(...) Não bastavam minhas regras, os cortes que fazia nas minhas mãos trabalhando na cozinha, as picadas de agulha em meio às costuras... Também tinha de sangrar pelo nariz. Acordar e ver o travesseiro empapado e vermelho. Quantas facas não coloquei na testa para que parasse de sangrar? Apertava-as tão forte que chegava a me ferir."
Entretanto o drama da personagem não comove, porque nenhum dos temas (a morte para o renascimento, o sangue-seiva do despertar da bela) é aprofundado nesse romance fundado em apelos óbvios, clichês de caracterização do universo da liberação feminina.
"Quando será que foi a primeira vez que Eva sangrou?", pergunta-se Magnólia, ela que exibe um nome de flor, vive numa cidade chamada Peregrina, conhece a cantora de cabaré chamada Magna e experimenta sua metamorfose numa cidade portuária chamada Maralto (alto-mar, mar livre).
O próprio clímax do romance, o momento em que Magnólia conhece Magna em um trem, tem algo de inverossímil, lembra a precariedade com que se constroem os "turning points" (momentos de decisão) das novelas de televisão, ou é quase um arremedo de recurso literário do realismo-fantástico.
Apesar disso, o livro de Buzzar tem uma qualidade essencial: a despretensão, certa honestidade emocional transparente na narrativa, embora realizada apenas em parte. A leitura é facilitada pela ligeireza da linguagem, quase ágil, quase forte em certos momentos. A personagem vai se construindo com suavidade e precisão interessantes de acompanhar.
O maior defeito não é difícil de identificar. É a constante em 99% da prosa de ficção brasileira dos últimos tempos: a falta de estilo, de marca própria. É como se estivéssemos lendo uma tradução, texto que, em princípio, qualquer um poderia ter escrito.

A OBRA
Maralto, de Rita Buzzar. 192 págs. Editora Brasiliense (r. Barão de Itapetininga, 93, CEP 01042-908, São Paulo, tel. 011/258-7344). R$ 21,00

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