São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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O elo perdido do barroco

IRLEMAR CHIAMPI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A história das reciclagens do barroco acaba de ganhar, com a publicação de "Lautréamont Austral", um avatar inesperado -uma espécie de elo perdido-, que explica como se deu o entroncamento dessa tradição hispânica com as vanguardas e a modernidade.
Sabíamos, antes dessa pesquisa que realizaram em conjunto Leyla Perrone-Moisés e Emir Rodríguez Monegal, que a pérola barroca saíra do seu longo ostracismo ilustrado e positivista, quando a geração espanhola de 1927 (García Lorca, Rafael Alberti, Dámaso Alonso, Gerardo Diego) havia desencadeado um movimento de reivindicação de Quevedo e Góngora, por ocasião do terceiro centenário deste último. Recuando um pouco mais, sabíamos que, nos anos 1910, o paralelo entre a engenharia poética de Mallarmé e a engenhosidade gongorina havia favorecido a revisão moderna do barroco, com suas projeções ulteriores, pós-modernas, do neobarroco. Não podíamos suspeitar, porém, que para ele havia concorrido Isidore Ducasse -o conde de Lautréamont, "o montevideano"-, muito antes, em pleno romantismo. Essa descoberta explica, pois, porque o ingresso de Lautréamont no panteão dos surrealistas franceses era mais do que uma coincidência com o movimento de resgate do barroco pelos poetas espanhóis.
Para juntar esses dois fatos, antes isolados e paralelos, Leyla e Monegal prestaram atenção a uma simples nota na capa de um livro descoberto na França como pertencente a Isidoro (sic) Ducasse. O livro é "A Ilíada", na tradução de José Gómez de Hermosilla, no qual o autor dos "Chants de Maldoror" e "Poésies" anota de punho e letra, em espanhol, que possui outro livro desse tradutor. "Ex ungue leonem!" Diligentes, os autores descobrem que esse outro livro é "El Arte de Hablar (1826), um manual de retórica muito difundido no âmbito hispânico do século 19. A partir de confrontações minuciosas das metáforas, tropos, inversões e paródias do conde de Lautréamont com as prescrições, regras e preceitos desse tratado de estilística normativa, revelam até que ponto o fato de o poeta auto-intitular-se "le montevidéen" deixa de ser uma curiosidade anedótica, para erigir-se como um dado cultural-linguístico ineludível em sua obra e biografia.
Um Lautréamont antártico, da periferia mais extrema do Ocidente -que falava, lia e pensava em espanhol também-, emerge a partir de sua condição de leitor (ou discípulo indisciplinado) dessas páginas prescritivas, legiferantes, de um mestre espanhol encasquetado com a retórica neoclássica. Leyla e Monegal esmeram-se em esmiuçar como os preceitos hermosillescos -que vão das recomendações de objetividade, concisão, energia ou solenidade no discurso, à defesa de uma lógica férrea para julgar o sentido de uma metáfora- se filtram para chegar às invenções poéticas de Ducasse. E estas parecem mais destinadas a contrariar o velho "magister" que a obedecer às suas prédicas.
O que chama a atenção, no conjunto das descobertas propiciadas por esse cotejo textual -e que inclui também a peculiar versão espanhola (de 1831) da "Ilíada" de Hermosilla-, é a importância do barroco para explicar a estranheza da linguagem ducassiana. As afinidades entre a linguagem poética do barroco e a da vanguarda já haviam sido percebidas por críticos ilustres como René Wellek ou Walter Benjamin (o estudo sobre o "Trauerspiel", escrito em 1924-25, fora motivado pelo surgimento do expressionismo). Mas o resultado dos descobrimentos relativos a Lautréamont oferecem as precisões sobre retórica que faltavam para superar a indicação de coincidências genéricas. Ao exumar o manual de Hermosilla, os críticos que resgatam a condição austral de Lautréamont resgatam (inevitavelmente) a presença da retórica barroca na revolução poética que sua obra trouxe ao romantismo e, mais além dele, como instigação à vanguarda surrealista.
Como são os poetas barrocos (tanto os maiores como Góngora, Lope, Quevedo ou menores como Bernardo de Balbuena) os mais citados por Hermosilla -como exemplos negativos do que não se deve fazer para exercer retamente a arte de falar-, a releitura dos "Chants" e "Poésies" se oferece como um palimpsesto que guardasse por baixo da tinta de uma escritura em francês esse "outro", submerso, em espanhol. Ao tornar-se reconhecível na prática do código francês esse outro, digamos "refoulé" (recalcado), que é o código espanhol, explicam-se os sempre apontados "disparates" tropológicos de Lautréamont por sua genealogia barroca; suas singularidades linguísticas tornam-se razoavelmente derivadas de seu bilinguismo e duplo estatuto cultural adquiridos no estudo da retórica dos que hoje chamamos de mestres da língua (mas que no século 19 eram execrados pelos remanescentes neoclássicos). Suas estranhezas estilísticas, tais como as personificações ou as perífrases, naturalizam-se facilmente quando aproximadas à sua legítima família literária do barroco hispânico.
O jovem Isidoro/Isidore fez, em suma, uma leitura "a contrario" do seu manual de estudante de letras, tirando máximo efeito estético do que o iracundo Hermosilla qualificava de pedante, alucinado ou indecente. Conforme sintetiza Monegal, ao anacronismo retrospectivo de Hermosilla (devoto do classicismo em meio ao romantismo triunfante), opõe-se o anacronismo prospectivo de Lautréamont, cujo barroco subliminar e deslocado projeta-se para o futuro da vanguarda surrealista. Ambos, é claro, tinham as idéias estéticas fora do lugar.
Tudo indica que essa confluência de anacronismos faz de Lautréamont o "elo perdido" que retifica o nosso conhecimento sobre o aproveitamento dos restos ou resíduos do barroco na modernidade estética. O fato de "o montevideano" ser um precursor, como queriam os surrealistas, é reforçado pela perspectiva meta-histórica que tem permitido ao barroco (re)produzir-se na temporalidade do diálogo imaginário (sempre anacrônico?) dos textos literários, conforme Lezama Lima, cem anos depois de Ducasse, praticou e teorizou em "A Expressão Americana" (1957).
Até que ponto essa liberdade de lidar com várias histórias, de mixar estratos e heterogeneidades temporais foi propiciada pela "americanidade secreta de Isidore? Ante a questão da identidade cultural, inevitável, que suscita esse tipo de prática discursiva, Leyla e Monegal revelam alguma diferença: Monegal, uruguaio, reivindica de modo passional que "Maldoror" deve ser visto doravante como um "texto hispânico", seja pelo seu bilinguismo subreptício, seja pelas afinidades com o barroco de Góngora e Quevedo; Leyla, mais prudente, focaliza em certas práticas discursivas (enunciação, tom, tiques expressivos) como Ducasse registrou sincronias e anacronismos, próprios à sua irreverência de bárbaro latino-americano, no manejo da língua francesa e em Paris, capital do século 19. Severo Sarduy, teórico e praticante do neobarroco, assina o apêndice desse livro e desempata: Lautréamont, ou melhor, "l'autre est à Mont" (evideo), é o sujeito ontologicamente cindido, o sujeito opaco e desgarrado, o herói romântico, desdobrado pela sua pertença a duas culturas.
Como se vê, nem Monegal, nem Leyla, nem Sarduy caíram na armadilha de reivindicar uma suposta unidade do "ser americano" para o jovem poeta de "Maldoror".
Foi também outra confluência afortunada que permitiu a realização dessa pesquisa, a partir do encontro de dois notáveis críticos literários na encruzilhada de São Paulo. Monegal -Emir, para os seus muitos amigos e admiradores brasileiros-, dilacerado pelo exílio, procurava compensar suas saudades com suas sucessivas viagens ao Brasil, desde 1975, que o aproximavam geograficamente ao seu Uruguai natal. Seu retorno só ocorreu em 1985, às vésperas de sua morte.
A colaboração de Leyla -paulista de projeção internacional, tanto por sua obra crítica sobre a literatura francesa (que inclui "A Falência da Crítica - Um Caso Limite: Lautréamont", 1973), como a brasileira e a portuguesa- viabilizou o projeto sobre "o montevideano". Os excelentes resultados críticos e a erudição de suas páginas não escondem o clima de afeto e humor que permeou o diálogo inteligente desses dois críticos latino-americanos. Não esconde, tampouco, que a preparação do livro teve, durante aqueles anos de espera, um valor simbólico, de retorno imaginário às origens cisplatinas que Emir compartilhava com Isidoro.

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