São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Destroços do realismo grotesco

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poemas do argentino Oliverio Girondo (1891-1967) e do norte-americano Robert Creeley (1926) serão trabalhados a seguir, criticamente, a partir de certas observações e construções teóricas de Mikhail Bakhtin, de "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento" (1). Este pequeno ensaio vai procurar mostrar que, em autores de línguas e gerações diversas, os "destroços do realismo grotesco, de que fala Bakhtin, estão presentes e são, como afirma o autor, "capazes de recuperar sua (da literatura) vitalidade".
Depois de anotar que o riso popular e suas formas constituem o campo menos estudado da criação popular, Bakhtin observa que: "O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época".
Adiante, em seu "A Cultura Popular", Bakhtin anota que, naquilo que ele batiza de realismo grotesco, o princípio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica: "O princípio material e corporal é percebido como universal e popular e como tal opõe-se a toda superação das raízes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal abstrato, a toda pretensão de significação destacada e independente da Terra e do corpo".
Observa Bakhtin que o traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da Terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. Para Bakhtin, no realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo. Alto e baixo possuem exclusivamente um sentido topográfico.
Alto é o Céu. Baixo é a Terra, e a Terra é o princípio de absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e de ressurreição (o seio materno). Escreve ele: "Esse é o valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico". Cósmico e corporal umbilicalmente vinculados: "O alto é representado pelo rosto (a cabeça) e o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro". Aponta Bakhtin, por outro lado, que o baixo é a Terra que dá vida e o seio corporal; o baixo é sempre o começo.
A perda progressiva do caráter universal do corpo e dos objetos, que adquirem perfil privado e pessoal, com a consequência do apequenamento e da domesticação, é, para Bakhtin, o marco inicial da modernidade (no caso, Cervantes), onde corpo e objetos "são degradados ao nível de acessórios imóveis da vida cotidiana individual, objetos de desejo e posse egoístas. Já não é o inferior positivo, capaz de engendrar a vida e renovar, mas um obstáculo estúpido e moribundo que se levanta contra aspirações do ideal". Observa amargamente Bakhtin que, na vida diária das pessoas, isoladas, as imagens do inferior corporal conservam apenas seu valor negativo, rompendo-se o vínculo com a Terra e com o cosmos.
Para o teórico, a imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. É ela ambivalente, inconclusiva.
Creeley e o corpo
O poema "Song" -em minha tradução-, de Creeley (2), se inicia com um verso que, ao mesmo tempo, parece afirmação e interrogação: "O que no corpo você esqueceu. O verso aponta para uma outra visão de corpo -contrária à privada e pessoal, domesticada e apequenada. O verso seguinte marca que alguma coisa foi deixada de lado neste corpo, algo que o sujeito não quer. O conflito é acirrado na estrofe seguinte com a dúvida: "Ou o que no corpo, você quer/ e morreria por-/ e pensa que isso basta". A estrofe tem a função de revelar que o sujeito imagina para si um corpo único, fechado, completo, que, porém, é incompleto.
A terceira e quarta estrofes vão negar tais "verdades", imaginadas pelo sujeito. A terceira estrofe -com tom "clássico"- se estabelece como uma hipótese: "Se a vida é uma forma a ser esquecida/ já que você partiu e sem remorso/ ninguém existe, no que você foi". Este trecho aparentemente se afasta dos conceitos de Bakhtin: "Nos períodos iniciais ou arcaicos do grotesco, o tempo aparece como uma simples justaposição simultânea do começo e do fim: inverno-primavera, morte-nascimento". O poema parece caminhar para a reiteração do corpo privado, domesticado, quando, já na primeira linha da última estrofe, diz: "Este lugar vazio é tudo que há". No verso seguinte, a vida do sujeito reaparece como lembrança, memória -formas atuais de se pensar a "morte", diferentemente do grotesco popular e medieval, que a pensava como início regenerador.
Todavia, a surpresa veemente do último verso, que resgata, em sua materialidade imediata, toda uma situação de transformação, de metamorfose, de incompletude para aquele corpo (este-lugar-vazio-é-tudo-que-há): "E se o rosto é lembrado/ ou cão late, gato esfomeado. A lembrança se materializa no latido do cão e no gato esfomeado", princípio regenerador, instinto, imagem grotesca, que arremata o poema e estabelece uma visão de incompletude para o corpo, tentando negar "a visão tipicamente burguesa, que expressa um modo preestabelecido e fragmentário". A unidade cósmica do corpo é recuperada no "ou cão late, gato esfomeado", reintegradora, dele, na Terra. Inexistente, portanto, um olhar puramente negativo do corpo ou da morte, apontando para -isto sim- o inacabamento da vida, em seu jogo com formas animais diversas. Todo significado do poema está no inacabamento orgânico do corpo -rejeitando uma visão clássica da vida.
Girondo e a morte
Destroços do grotesco. A leitura é autorizada pelo próprio Bakhtin: "No século 20, assistimos a um novo e poderoso renascimento do grotesco. (...) A linha de sua evolução é bastante complicada e contraditória". Bakhtin aponta duas vertentes de retomada do grotesco. A primeira, modernista (Alfred Jarry), a segunda, realista (Thomas Mann, Bertolt Brecht, Pablo Neruda etc.). Ao se referir a Neruda, fala de uma "influência direta das formas carnavalescas". Neruda é, ao lado, entre outros, de Girondo, um dos fundadores da nova poesia latino-americana, na acepção do crítico Saul Yurkievitch.
Tratando do grotesco na Idade Média, Bakhtin observa: "O ambiente de liberdade efêmera reinava tanto na praça pública como no banquete festivo doméstico. (...) Essa tradição permanece viva nos séculos seguintes. Ela apresenta analogias com as tradições das canções báquicas de mesa, que associam o universalismo (a vida e a morte), o aspecto material e corporal (o vinho, o alimento, o amor carnal), um sentimento elementar do tempo (juventude, velhice, caráter efêmero da vida, versatilidade do destino) a um utopismo original (fraternidade dos bebedores, triunfo da abundância etc.). Universalismo e liberdade que, segundo o teórico, ligavam-se à verdade popular não-oficial.
Esses elementos, inventariados pelo ensaísta, encontram-se à farta na poesia de Oliverio Girondo e sobretudo em "En la Masmédula" (3). Yurkievitch anota que "reglar al desarreglo sin arregarlo" é uma das preocupações fundamentais de Girondo. Em outras palavras, representar a destruição através de construções verbais eficazes (vida/morte). De acordo com Yurkievitch, Girondo passa a negar e a renegar aquilo que só tem estatuto literário, filiando-se ao que se pode chamar de vital-intuitivo-construtivo, numa operação de reintegração fraterna com o cosmos.
Daí, a importância do larval -restabelecimento do vínculo com a mãe Terra, as forças genéticas. A restituição do cordão umbilical: a volta à integridade do começo de modo tão veemente, que o lança, para além do materno-infantil, num discurso -à maneira de Bakhtin- protoplasmático.
A Terra é o princípio da absorção. Túmulo. Ventre. Seio materno. A ambivalência contraditória. Morte. Ressurreição. A velha grávida, sorrindo, no exemplo de Bakhtin. O vinho. O alimento. O amor carnal. Temas presentes e trabalhados por Girondo em todo "En la Masmédula" e, por exemplo, no fragmento "Ela", que será mais detidamente analisado.
O poema "Ela" tematiza uma mulher, mas isso somente vai se clareando ao longo de sua leitura. Os primeiros versos transitam entre o significativo e o impreciso, dando até a impressão de que tratam de um ser enfermo: "É uma intensíssima corrente/ um relâmpago ser de leito/ uma dona mórbida onda/ um refluxo zumbo de anestesia...". A descrição de uma mulher enferma (quase morta), numa cama de hospital? A resposta é oferecida pelos versos seguintes: "Uma voraz contráctil prensil corola entreaberta".
Aí, neste ponto, reside a ambivalência inventariada por Bakhtin no mundo popular medieval, na contradição morte/vida, na morte vista como início. Dessa "corola entreaberta exala o perfume de seu "orvalho afrodisíaco". Em seguida, o poeta nomeia a situação como "carnalessência" e a qualifica de "natal/letal". O paradoxo proposto encontra eco nas idéias de Bakhtin a respeito do mundo medieval, de seu inacabamento.
A proposição da Terra como túmulo, ventre e seio vai contudo encontrar formulação mais intensa nos versos seguintes, onde a cada palavra há uma contradição sem síntese, que não a idéia de morte como reinício, Terra como túmulo e literalmente ventre: "É a sede dela ela e suas vertentes lentas entre-/ mortes que estrelam e desagregam/ ainda que Deus seja seu ventre/ mas também é a crisálida de uma inalada larva/ do nada".
Os aspectos materiais e corporais deste poema vão, a cada momento, se explicitando. Da "corola entreaberta", que equivale ao "traseiro" bakhtiniano, até a nomeação da mulher como "composto terrestre de libido éden inferno". Deus e o diabo -"resíduos de uma solução insolúvel" ou "pedaço ultraporoso da realidade indubitável". Aí, novamente, voltamos a Bakhtin: o alimento e o amor carnal ou "um paraíso feito carne/ uma perdiz ao creme". Despótica matéria, mera aparência de ausência, que restabelece a imagem positiva do corpo e de suas partes inferiores.

NOTAS
1. Mikhail Bakhtin, "A Cultura Popular No Renascimento e Na Idade Média", Edunb/Hucitec, 2ª edição, 1993
2. "Song", poema de Robert Creeley, estampado no livro "Windows", New Directions, 1988
3. Os poemas de Oliverio Girondo mencionados neste trabalho pertencem ao livro "En la Masmédula", Obras Completas de Oliverio Girondo, Editorial Losada, Buenos Aires, 1968

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