São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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O sublime fim

Shakespeare conduz Cleópatra à tragédia erótica

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Freud ensinou que a terapia das terapias é não investir libido demais num objeto só, qualquer que seja. Antônio, ao final, recusa a sabedoria freudiana e, em consequência, sofre o que pode-se chamar uma tragédia erótica. Também Cleópatra, que de sua parte passou a vida seguindo à risca a norma de Freud, sofre outra tragédia erótica -por conta de Antônio, mas um ato mais tarde que ele.
A tragédia de Antônio e Cleópatra é um caso sem paralelo entre as peças de Shakespeare, porque aqui o caráter duplo da tragédia -que arrebata o homem tanto quanto a mulher- diz respeito a duas personagens igualmente gigantescas. Cada uma é quase tudo em si e para si e tem consciência disto.
Antônio e Cleópatra assumem conscientemente muitos papéis, mas também são, de fato, esses papéis. Um e outro sabem muito bem como assumir o papel de si mesmos e como ser eles mesmos. À semelhança de Falstaff e Hamlet, são personalidades ou consciências supremas e grandiosamente antimaquiavélicos.
Apaixonam-se, resistem e traem esse amor repetidas vezes, mas afinal entregam-se a ele e são destruídos, de maneira a realizar plenamente suas naturezas alienadas. Seus suicídios nos impressionam como um triunfo humano e uma liberação. Mas por quê? E como?
O que há de mais original aqui é a representação de duas grandes personalidades -o herói hercúleo e uma mulher de astúcia infinita- em seu declínio avassalador e ruína. Uma destruição pelo amor autêntico transforma-se em redenção estética, precisamente porque a sombra do amor é a ruína. Não há, antes de Shakespeare, outra representação assim. A visão de Eurípedes da ruína erótica, em "Medéia", não permite qualquer redenção estética, e a rainha Dido, de Virgílio, é, como Medéia, uma sofredora solitária. Antônio e Cleópatra traem um ao outro e a si mesmos, mas essas traições são perdoadas por eles e por nós, como fases de uma apoteose, liberando fogos de grandeza, mesmo se os faróis se quebram.
A partir da cena 14, no ato 4, até o fim da peça, o que se escuta é algo de extraordinariamente original até para Shakespeare, uma cadência nobre de morte, o advento de uma nova música. Há um toque deliberado de Hamlet no Antônio que observa a instabilidade das nuvens e comenta, com seu bem nomeado assistente Eros, que "ainda restamos nós, para acabar conosco". Mas a selvageria paródica de Hamlet modula-se aqui numa gentileza mais condizente com a transmutação do herói carismático, numa consciência que passa além de si, quase para além das consolações de uma despedida.
A gradiosidade desta transformação será ressaltada quando Antônio recebe a notícia falsa da morte de Cleópatra, enviada por ela mesma: "Depõe as armas, Eros, a tarefa do dia acabou;/ Precisamos dormir". Quem responde a isto é Cleópatra, com Antônio morto em seus braços, na cena seguinte: "Derreteu-se a coroa da terra. Meu Senhor!/ A guirlanda da guerra murchou,/ O estandarte caiu. Meninos e meninas/ São iguais, agora, aos homens; não há diferença./ Não há mais nada que chame a atenção/ Sob a luz passageira da lua".
Antônio toca nos limites do sublime ao se preparar para morrer, mas este lamento de Cleópatra pelo sublime perdido é o prelúdio a uma sublimidade ainda maior, e só dela. Cleópatra é, ela mesma, uma grande atriz, o que explica a dificuldade extraordinária de encenar esse papel. E muito embora tenha amado, com toda certeza, Antônio, é inevitável que, como toda grande atriz, também nutra por si uma paixão quase apocalíptica.
A amplidão de Antônio como personagem ultrapassa a de qualquer outro herói shakespeariano, exceto Hamlet; ele é a versão derradeira do líder carismático. Mas Shakespeare inteligentemente dá cabo dele faltando um ato inteiro da peça e, em retrospecto, vemos que esta tragédia não é menos de Cleópatra do que são de Falstaff as duas partes de "Henrique 4".
Antônio nos cativa, acima de tudo, por seu esplendor, que faz dele uma catástrofe para Cleópatra, não menos do que ela para ele. Cleópatra está apaixonada pela exuberância de Antônio. Mas sabe que ele não tem a sua infinita variedade. Em termos freudianos, o amor dos dois não é narcisista, mas anaclítico: eles se apóiam um no outro, entidades cosmológicas fadadas a se aborrecer com qualquer um que não eles mesmos.
Antônio é o único páreo verdadeiro para Cleópatra, mas não chega a ser seu igual. Homem imaginativo, na medida que move a imaginação dos outros, simplesmente não tem a força real de imaginação de Cleópatra. Não precisa fazer o papel de si mesmo; é efetivamente um Hércules. Já ela só cessa de se auto-representar quando alterada pela morte e suas consequências, e nem então pode-se ter certeza de que não esteja, simultaneamente, representando e assumindo uma identidade ainda mais transcendental. Estranhamente próxima a Hamlet neste aspecto, ela sugere, ao fim, ter-se deslocado para uma nova fronteira da existência: "Sou fogo e ar; meus outros elementos/ Deixo para uma vida mais baixa".
Não será mais a terra do Egito, ou a água do Nilo? Ninguém pensa nela exatamente como uma mãe devotada, a despeito de seus filhos com Júlio César e Antônio; mas em seu diálogo de morte com Charmian, ela converte as serpentes primeiro num bebê e depois, ao que tudo indica, num Antônio a quem teria dado à luz -como, em certo sentido, deu mesmo:
Charmian: Estrela do oriente!
Cleópatra: Quieta, quieta.
Não vê este menino no meu seio,
Charmian: Não diga mais nada, não diga mais nada.
Cleópatra: Doce como um conforto, suave como o ar, gentil como...
Ah, Antônio! - Não: venha você também.
(Aplica outra serpente no braço.)
Por que ficar mais tempo -
(Morre).
Na morte de Lear, é Kent quem exclama "Parte, coração, te peço; parte!", empregando em outro sentido a mesma palavra de Charmian nesta cena: "Break!", que significa "partir", mas também "interromper a fala". E a serva de Cleópatra também não suporta mais vê-la sofrendo. Quando os soldados de Antônio o encontram ferido de morte, lamentam que "a estrela caiu e que o "tempo chegou a seu termo". A "estrela do oriente" de Charmian associa os dois amantes na hora da morte, da mesma forma que o eco das palavras de Kent serve para insinuar que a Imperatriz do Oriente tem alguma coisa da inocência da loucura de Lear.
Cleópatra adormece como uma mãe com o filho ao seio, ou uma mulher com o seu amante, e morre numa paz tamanha que até César, de todos os homens, vê-se movido a um último tributo: "Parece adormecida,/ Como se fosse acorrentar mais um Antônio/ Na exaustão de seus encantos". Desconcertante até a última manifestação de sua variedade infinita, Cleópatra passa a um outro domínio, outra dimensão do sublime, para onde nenhuma atriz jamais passou.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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