São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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O caleidoscópio do consumo

CONTARDO CALIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

As revistas de moda conseguem a inédita façanha de serem pagas duas vezes, ou seja, de venderem suas páginas aos anunciantes e os próprios anúncios ao leitor. Os anunciantes pagam para publicar suas imagens, e os leitores compram as revistas para vê-las.
Quando compramos "Vogue", "W", "Harper's Bazar", queremos ver os anúncios. Também as revistas canônicas de moda não servem para as pessoas escolherem suas vestimentas. Elas não são nem querem ser catálogos de roupas ou acessórios. Os preços, quando mencionados, estão decididamente fora do alcance do leitor médio. Mais: as roupas aparecem cada vez menos claramente, quando aparecem. Close-ups que mal permitem entrever uma gola, movimentos improváveis do corpo, olhares, barbas mal feitas, "flous" artísticos vêm compondo um novo kitsch, uma nova e polifônica estereotipia.
A imagem de moda deve aparentemente, antes de mais nada, ser um clichê, sempre alusivo a uma dimensão da felicidade -pelo sexo, pelo status, ou mesmo, ao contrário, pela revolta- e, sobretudo, deve ser sempre redundante, demasiadamente evidente. Por inventiva que possa ser, ela já pertence ao catálogo dos sonhos.
Em suma, compramos anúncios, e os anúncios não nos vendem roupa. As revistas de moda tornam-se assim um objeto cultural paradoxal, que parece não ter uma função comercial, mas uma função social compartilhada por anunciantes e leitores: a de criar e celebrar estereótipos como cimento de nossa socialidade.
A revista da moda -que nos parecia uma exceção editorial- pode assim vir a representar uma norma ética e política.
Na falta de referências morais compartilhadas -normal em nossa cultura individualista-, ela nos fornece um certo patrimônio de estereótipos estéticos comuns. Não sabendo decidir coletivamente o que é bom e o que é mal, conseguimos concordar sobre o que é elegante. Para quem pouco quer saber das tradições recebidas, critérios estéticos substituem vantajosamente critérios éticos.
Quem sabe, aliás, mesmo quando lemos os jornais, de fato não procuramos prioritariamente informações e opiniões que orientem nossa conduta, mas estereótipos que sirvam de modelo a nossa maneira de ser, elementos que nos contem nossas vidas do jeito que gostaríamos que fossem. Talvez a revista de moda seja reveladora da forma dominante de nossa vida social e cultural: uma eflorescência de imagens, espelhos mágicos propostos a nossa paixão narcísica.
Breves sobre o mesmo tema:
1. O "The New York Times Magazine" (17/9) dá conta do trabalho -ainda inédito- de Claude Steele, psicólogo social de Stanford (EUA). Steele fez a experiência seguinte: propôs um mesmo teste acadêmico a dois grupos de estudantes de composição racial mista e similar. Em um caso, disse que se tratava de um exercício para identificar e analisar dificuldades na solução de testes verbais; no segundo, que se tratava de um teste para verificar e comparar a habilidade verbal dos estudantes.
No segundo caso, e só nele, os resultados dos estudantes negros foram decididamente inferiores. Steele deduz desta experiência que a pretensa "inferioridade" intelectual dos estudantes negros (que os autores de "A Curva do Sino" querem que seja genética) poderia ser o efeito de uma complacência com o estereótipo. Como se os negros, no caso, tivessem que se mostrar e ser de fato menos eficientes para respeitar (por assim dizer) um estereótipo racial. O mesmo se verificaria com estudantes brancos confrontados com a necessidade de provar suas habilidades junto a estudantes asiáticos (cujo estereótipo é de ser mais inteligentes do que os brancos).
Já notei (Mais!, 4/7/1995) que as identidades raciais contemporâneas poderiam bem ser estereótipos sociais. O mesmo vale para as identidades de gênero ou sexuais. O estereótipo é a modalidade identificatória dominante de uma cultura libertária: onde a organização social não reconhece privilégios de estirpe ou casta, onde a tradição não dita as regras da organização social, todos parecem procurar uma significação social na conformidade estética com as imagens que a cultura propõe e cristaliza como clichês.
2. Saiu o primeiro número de "George", a muito esperada revista dirigida pelo jovem John F. Kennedy Jr. O editorial anuncia: "Desmistificar o processo político para tornar (o leitor) capaz de ver os políticos não só como símbolos ideológicos, mas como homens e mulheres vivos que dão forma à vida pública". Mas "George" não é a revista "Caras" da política americana. É mais a "Vogue". De novo o editorial: "George" é um magazine de estilo de vida com a política em seu centro.
A osmose entre páginas redacionais e anúncios (mais de 100 anunciantes) é extraordinária e inédita. A mensagem é dramaticamente evidente: o que regula o pensamento contemporâneo -portanto também o pensamento político- são exemplos de estilo nos quais nos pareceria bom e bonito que a narrativa de nossas vidas se moldassem. A capa apresenta Cindy Crawford como George Washington, ou seja, o caminho pelo qual podemos gostar de Washington é hoje o mesmo pelo qual gostamos de Cindy Crawford.
3. FHC declarou que a cultura de massa está acabando em uma "fragmentação imensa dos públicos e dos criadores". Ao ler o debate aberto no Mais! da semana passada, fica a impressão -como nota Fernando de Barros e Silva- de assistir a um enfrentamento entre apocalíticos e integrados. De um lado, a cultura de massa seria uma homogeneização totalitária que, de fato (FHC tem razão), não tem muito a ver com nossa realidade. Do outro, uma floreira primaveril de diversidades.
Talvez valesse a pena deslocar a questão: uma cultura como a nossa -valorizando a autonomia individual acima da tradição- não tem como manter de alguma forma juntos os seus membros por alguma referência comum a um sistema constituído de valores. Se, embora indivíduos, continuamos vivendo em sociedade, só pode ser graças a um patrimônio cultural comum, neste sentido: de massa. É esta cultura feita de imagens e narrativas atraentes que junta, como dizia Giannotti no debate, "o menino mais pobre da periferia de São Paulo" com o menino rico dos Jardins ou de Nova York.
Dir-se-á que os dois estão assim "alienados". Resta, por um lado, perguntar em relação a quê. Qual verdade essencial do humano demonstrará que o caleidoscópio pós-moderno da sociedade de consumo é uma perniciosa ilusão? Sem esquecer que este imaginário de massa tem uma vantagem: ele muda, deixa-se alterar, exatamente como mudam as imagens das revistas de moda.
Dir-se-á ainda que, apesar de mudar, ele continua propondo a apologia dos objetos e parece nos integrar sempre em um ideal de consumo. É verdade, mas -infelizmente ou não- uma sociedade de indivíduos (o que não significa todos livres, mas todos valorizando sua autonomia) dificilmente poderia compartilhar uma noção comum de bem supremo. E, sem ela, aparentemente só nos resta o desfile dos bens...

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