São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 1995
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Aborto "legal" e a Constituição

JOSÉ CARLOS GRAÇA WAGNER

Direito à vida é inviolável. Como é óbvio, inviolável quer dizer que não pode ser violado. Nem ameaçado de violação. Basta a ameaça para que o direito deva ser protegido, incontinenti.
Ora, há duas correntes de pensamento sobre a existência ou não de vida humana no feto: uma no sentido de que na concepção surge plenamente o ser humano. Outra, que o feto é mera matéria biológica e só é vida após sua "libertação" do útero. É a posição do feminismo radical de hoje. Não é o caso de discutir quem tem razão.
Não há, de fato, mais dúvida possível sobre o surgimento da vida na concepção, mormente quando a ciência já estabeleceu que, após a concepção, nada ocorre que possa alterar a natureza do ser surgido com a união das duas células. A partir daí, só há o desenvolvimento do feto.
Após a concepção, todos os aspectos biológicos e até o temperamento do ser humano em formação já estão definidos, inclusive a cor dos cabelos.
Aceitemos, porém, a "dúvida", para permitir o debate. Pela Constituição, havendo dúvida sobre a possibilidade de já existir vida, há pelo menos ameaça de violação, pois a dúvida sobre se há ou não vida humana é a admissão de que pode haver. Ora, o que é inviolável não pode estar sequer sujeito à ameaça de violação. Se há a menor possibilidade de que, além do princípio natural, o princípio constitucional seja violado, se se interromper o desenvolvimento do feto, a ameaça é patente. E não há vida mais importante ou menos importante.
Dentro da ordem natural é a mãe que renuncia à vida em favor do filho. Ao médico cumpre atuar para salvar ambas as vidas, sem decidir sobre riscos que são sempre subjetivos, por mais dados que se tenha sobre o assunto. Não lhe cabe decidir qual a vida que deve ser salva nem qual é a mais importante.
De outro lado, se a vida é direito inviolável, nem mesmo o Código Penal pode prever qualquer exceção. Eliminar a vida é sempre crime e é punível. O Código não pode determinar, portanto, que a pena não seja aplicada em caso de risco de vida ou estupro. Fere, com isso, a Constituição.
Note-se, ademais, que o Código Penal não descriminaliza. Apenas despenaliza. Continua a ser crime, mesmo que em cada caso concreto não se aplique a pena. Mesmo assim tais exceções ferem o princípio constitucional citado. No caso é gritante a ofensa, pois o feto, além de inocente, é indefeso e não deve responder sequer pelo risco de vida da mãe. Ele deve correr apenas o seu próprio risco de vida como todos os seres humanos, já saídos ou não do útero materno.
Pelo Código Penal, em acréscimo ao fato de serem essas hipóteses inconstitucionais, está estabelecido que a responsabilidade do médico que pratica o aborto é totalmente sua. Não é do hospital. Nem o hospital nem o poder público podem obrigar o médico a praticar o aborto, pois ele é que responderá por erro de avaliação no que diz respeito ao risco de vida da gestante ou por ter sido induzido a erro, se se omitir na verificação concreta da efetiva ocorrência de estupro.
Ninguém pode impor que alguém assuma a responsabilidade pelo aborto quando a lei, que é inconstitucional, apenas a ele atribui a decisão final sobre a sua prática. Ademais, como a norma em questão não prevê autorização judicial, esta é inócua. Não faz coisa julgada e, portanto, o médico continua a ser o único responsável.
O Código Penal coloca o médico como juiz de um ato definido em lei como homicídio e em relação ao qual não sofrerá pena, se inconstitucional não fosse, somente se comprovado de forma patente, o risco de vida ou o estupro. A autorização da gestante não supre também a responsabilidade do médico, pois é preciso assegurar que o estupro ocorreu de fato.
Como o direito inviolável à vida é cláusula constitucional pétrea, ou seja, não pode ser alterada nem mesmo por emenda constitucional, para se adotar o aborto será necessária uma revolução que derrogue a atual Constituição.

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