São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Sob o signo das idéias

MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

Introdução Crítica à Sociologia Brasileira
Guerreiro Ramos Editora da UFRJ, 290 págs. R$ 24,00

A Sociologia do Guerreiro
Lúcia Lippi Oliveira Editora da UFRJ, 193 págs. R$ 20,00

A sociologia no Brasil atravessa um momento de intensa reavaliação das obras do passado. Ao mesmo tempo em que se rediscutem as teorias clássicas, busca-se repensar a sociologia produzida por sociólogos brasileiros, no sentido de apreciar as várias contribuições e de sopesar o alcance das análises empreendidas.
Nos anos 50, período de constituição da chamada sociologia moderna entre nós, difundiu-se certo padrão de pesquisa, de assimilação das principais vertentes teóricas, mas, principalmente, de construção da autonomia disciplinar.
Emergiu aí a institucionalização da sociologia, explícita na sua face acadêmica, de caráter profissionalizado, na qual o exemplo de São Paulo foi paradigmático. Os sociólogos de então pareciam imbuídos da importância do seu discurso e, principalmente, da necessidade de alçar o pensamento sociológico à maturidade, ao se reconhecerem atores privilegiados no panorama intelectual do Brasil.
No quadro dessas considerações, inscrevem-se tanto a reedição da obra de Guerreiro Ramos, publicada originariamente em 1957, como o livro de Lúcia Lippi Oliveira, composto de cinco ensaios, escritos em diferentes momentos, acrescidos de uma entrevista inédita do sociólogo, realizada poucos meses antes da sua morte, na Califórnia. O problema inicial, a orientar a análise de Lúcia Lippi sobre Guerreiro Ramos, refere-se ao reconhecimento da possibilidade de "compreender, de entrar no universo pessoal e profissional do autor sem supor que seja necessária uma transmutação" (pág. 8). A recusa da identificação respalda-se no afastamento da "conversão" como necessidade ingente da interpretação, em nome da "compreensão" que supõe graus diferenciados de distanciamento. O princípio da identidade como motor da avaliação da produção intelectual de Guerreiro Ramos havia sido, aliás, reivindicação do sociólogo: "Alguém tem que fazer um estudo sobre mim... Tem que ser um encontro pessoal, com a pessoa, um negócio sem mediações" (entrevista reproduzida no livro de Lúcia Lippi Oliveira, pág. 183).
Apesar de afastar-se do prisma no qual o sociólogo gostaria de ser interpretado, Lúcia Lippi realiza um estudo equilibrado da trajetória de Guerreiro, análise que pretende dar conta dos diversos ângulos "desta grande, contraditória e fascinante figura de intelectual" (pág. 8). Inserindo o autor no interior da sua geração, na Bahia dos anos 30, a autora reconstrói o universo cultural de Salvador, rastreando as fontes intelectuais de Guerreiro Ramos, a sua formação, os contemporâneos. Os anos são propícios ao engajamento político e Guerreiro adere à ala católica do integralismo, inspirada nos escritos de Jacques Maritain. Em 1939, publica "Introdução à Cultura", conjunto de ensaios que encerra suas filiações mais diretas, apoiadas em autores e revistas de tradição católica. Esse tempo de estréia marcará profundamente a produção do futuro sociólogo.
Segundo a autora, ocorrerá substituição dos princípios que guiavam as suas reflexões, mas preservando-se as idéias missionárias, típicas, aliás, de certos intelectuais católicos. O próprio Guerreiro afirmava o caráter militante de toda a sua atuação: "No fundo, há qualquer coisa aí de messiânico" (entrevista citada, pág. 165). Como decorrência, o compromisso da sociologia de Guerreiro Ramos é assumido "à outrance", em visível afastamento da neutralidade. O segundo capítulo do livro, "A Sociologia Como Saber de Salvação", centra-se na análise da obra mais importante do sociólogo baiano, "A Redução Sociológica", lançada em 1958 e em cujas páginas o autor reafirma os princípios de sua sociologia missionária. As "leis da redução sociológica" explicitam o "comprometimento" e o "engajamento" do saber sociológico, cuja construção pressupõe a absorção crítica do conhecimento científico estrangeiro, no sentido de adequá-lo ao contexto social particular, à fase histórica que o caracteriza. Tal perspectiva já informava a "Crítica da Sociologia Brasileira" lastreada no princípio da historicidade, vista como "teoria militante da realidade nacional". Em "Cartilha Brasileira do Aprendiz de Sociólogo" publicada no livro e escrita com o intuito de responder às críticas de que fora alvo, na ocasião do 2º Congresso Latino-Americano de Sociologia, realizado em 1953, Guerreiro distingue duas vertentes do pensamento sociológico: "consular e enlatada" ou "autêntica" e promotora do "autoconhecimento" (págs. 107-108). A primeira é acadêmica e fruto de transplantação; a segunda leva à autodeterminação, por excluir a simples importação.
O problema subjacente a essa postura de Guerreiro Ramos leva-o a tecer críticas acerbas aos sociólogos brasileiros, principalmente aos estudos dirigidos à análise da condição dos negros. Na sua acepção, a partir de 1934, "os estudiosos passaram a distinguir raça e cultura e se orientaram, predominantemente, conforme o sistema de referência adotado pelos sociólogos ianques neste campo, sistema de referência em que são capitais as noções de 'aculturação', 'homem marginal', o par conceitual 'raça-classe' e, ultimamente, a categoria ecológica de 'área', a de 'estrutura', a de 'função' " ("Cartilha Brasileira", pág. 198). Nesse andamento, o capítulo de Lúcia Lippi, "Donald Pierson e a Sociologia no Brasil", encaminha a discussão sobre a presença da abordagem americana, especificamente sobre a Escola de Chicago, nos trabalhos dos sociólogos brasileiros. O próprio Guerreiro chama a atenção para o seu "affair" com a sociologia produzida nos Estados Unidos. Posteriormente, quando se lhe perguntou sobre a influência de Pierson, respondeu: "Ele abriu um horizonte, mas não teve influência nenhuma em mim, eu fiz o negócio por mim mesmo" (entrevista citada, pág. 141).
O capítulo seguinte, "O Trabalho Sociológico: Dois Padrões", confronta as propostas para a sociologia de Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes. As diferenças são flagrantes: enquanto Florestan representa a experiência universitária, detentora de um estilo de fazer sociologia, Guerreiro é antiacadêmico por excelência. "Se para Florestan ciência é positividade, para Guerreiro ela é consciência, é perspectiva" (pág. 108). A crítica de Guerreiro Ramos a Florestan atinge o cerne do empreendimento do paulista, que intentou trabalhar as contribuições clássicas, para haurir, das diversas abordagens, princípios teóricos e metodológicos seguros que encaminhassem adequadamente a investigação. Na leitura do sociólogo baiano, "os nossos autores estão sempre dispostos a fazer aqui a conciliação de doutrinas que, nos próprios países de origem, são incompatíveis" ("Crítica da Sociologia", pág. 38). E, talvez aqui, teria sido interessante aprofundar as vias divergentes e retirar as implicações dessas posturas no resultado das obras.
A perspectiva nacionalista de Guerreiro, explícita no seu compromisso com a nação e a industrialização, desembocou numa obra mais de circunstância, apesar do grande interesse que, ainda atualmente, suscita. Em contrapartida, a ênfase de Florestan no problema da estrutura social e da constituição da ordem capitalista no Brasil permitiu-lhe atingir horizontes mais vastos. O ponto de partida, atestado em concordâncias opostas, redundou em expressões inconciliáveis. E o enfrentamento em torno de posições era inevitável, nesse momento crucial da sociologia no país. "Assim, a questão principal de Guerreiro é a formação de uma teoria da sociedade brasileira, e é esta questão que guia sua análise sobre os intelectuais brasileiros", arremata Lúcia Lippi no seu último capítulo sobre "A Inteligência Brasileira à Luz da Sociologia Profética de Guerreiro Ramos". Questão estranha a Florestan que propugnava, ao contrário, pela superação do estilo estamental de reflexão, típico do ensaísmo.
O pressuposto da identidade como móvel do conhecimento e construtor de uma "propedêutica sociológica", no ponto de vista de Guerreiro Ramos, permitiu-lhe escrever "Patologia Social do 'Branco' Brasileiro", ensaio instigante e vivo até hoje. O autor interliga o problema do negro ao do branco, no qual as visões sobre o primeiro falam do segundo. A identificação é pressuposto da compreensão e a vivência da sua condição de mulato abre-lhe experiências intelectuais novas. "Quero dizer, começa-se a melhor compreender o problema quando se parte da afirmação - niger sum" ("Cartilha Brasileira", pág. 199).
Para Joel Rufino dos Santos, "o sociólogo populista Guerreiro Ramos descobriu que o negro ele próprio é um lugar de onde descrever o Brasil". E isso não é pouco. Semelhantemente, Florestan Fernandes, em "A Integração do Negro na Sociedade de Classes", percebe no dilema dos negros e mulatos a presença dos impasses para a efetiva modernização e democratização do país. Nesse campo, as divergências se esfumam. Em outros, elas se anulam, por terem sido ambos intelectuais que pagaram, como gostava de dizer Guerreiro Ramos, o "ônus das idéias". E se não existissem outras razões, esta já seria bastante para louvar a iniciativa de reeditar a obra de Guerreiro e a publicação desse livro imprescindível de Lúcia Lippi Oliveira que representa real contribuição à história da sociologia no Brasil.

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