São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Em busca de seu objeto

FEDERICO NEIBURG
EDITORA SUMARÉ, IDESP, FAPESP, 558 PÁGS. R$ 25,00

O livro tematiza, de um lado, as ciências sociais: um conjunto de autores, instituições, disciplinas, obras, teorias e debates; de outro lado, o Brasil: ao mesmo tempo uma referência ao contexto nacional de uma experiência social e a menção de uma unidade analítica. Seis anos após a publicação do primeiro volume de "História das Ciências Sociais no Brasil" (1), este segundo volume prossegue a tarefa de oferecer um material indispensável para compreender algumas das questões suscitadas pelo cruzamento desses dois termos. Os dois livros confirmam que o grupo coordenado por Sergio Miceli no Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) é um dos mais dinâmicos pólos de pesquisa e de atração para pesquisadores interessados na história social dos intelectuais no Brasil.
A história intelectual é um campo de estudo que tem a particularidade de revelar o caráter sempre difuso das fronteiras entre sujeito e objeto. Em vez de falar dos "pais", dos "pares" e dos "objetos" de forma narcisista e substancializadora -riscos nos quais incidem boa parte da literatura consagrada a temas afins-, os nove textos reunidos neste volume, na maioria baseados em sólidas pesquisas empíricas de caráter sociológico, histórico e etnográfico, oferecem material fundamental para o exercício de uma reflexão crítica sobre a gênese do mundo das ciências e dos cientistas sociais. Trata-se de um conjunto de artigos que -embora não de modo explícito em todos os casos- permite problematizar o que constitui o objeto maior da sociologia ou da história social e cultural das ciências sociais: o estudo das relações e das fronteiras entre esse microcosmo e o macrocosmo social no qual elas existem e que tomam como objeto.
Três artigos apresentam resultados de pesquisas de caráter mais definidamente historiográfico. Maria Arminda do Nascimento Arruda oferece uma história da "escola paulista" de sociologia cujo fio condutor é uma extensa análise da trajetória intelectual de seu "pai fundador": Florestan Fernandes. Silvana Rubino serve-se da "Revista do Arquivo Municipal" do Departamento de Cultura da prefeitura da cidade de São Paulo para esboçar a história de duas instituições que funcionaram nessa cidade entre 1935 e 1945: a Sociedade de Etnografia e Folclore e a Sociedade de Sociologia. Lúcia Lippi de Oliveira traz à luz um rico material documental para estudar dois capítulos da história das ciências sociais no Rio de Janeiro: a constituição da Faculdade de Filosofia na Universidade do Distrito Federal (em 1939) e a trajetória do Centro Latino-Americano de Pesquisas Sociais (Clacs, 1957-1976). Seu artigo tem o mérito de problematizar uma hipótese que permanece relativamente implícita nos textos centrados em São Paulo: a que opõe ao caráter supostamente mais autônomo das ciências sociais paulistas um maior grau de dependência para com a política no caso carioca. Se o Clacs pode ser visto como um exemplo de reflexão acadêmica "independente" no Rio de Janeiro, a experiência das Sociedades ligadas à Prefeitura de São Paulo, algumas inflexões na trajetória de Florestan Fernandes -que o levaram de uma concepção "cientificista" a uma concepção "militante" da sociologia-, e o conteúdo da produção posterior de alguns de seus alunos -preocupados em propor "saídas" para o país-, sugerem a rentabilidade de substituir as suposições relativas à "autonomização" -que em geral levam a formulações de conteúdo negativo- pela problematização -positiva- das diferentes modalidades de relação entre o mundo das ciências sociais e outras dimensões da vida social.
Dois artigos têm um caráter mais etnográfico. A etnografia histórica proposta por Mariza Corrêa analisa a antropologia social entre 1960 e 1980 chamando a atenção para os diversos cruzamentos entre trajetórias individuais, projetos institucionais e discussões teóricas e políticas, a partir da história dos quatro primeiros programas de pós-graduação criados no país, no Museu Nacional, na USP, na Universidade de Campinas (Unicamp) e na Universidade de Brasília (UnB). Maria da Glória Bonelli traça a etnografia de um grupo de graduados nos anos 70 que, no momento em que foram entrevistados, desempenhavam as mais diversas atividades (acadêmicos, jornalistas, atores, donas de casa etc.). Embora suas conclusões pudessem ter sido enriquecidas pelo estudo das trajetórias sociais dos entrevistados, o trabalho tem o mérito de mostrar o caráter fluido, heterogêneo e não substantivo das representações sobre as ciências e os cientistas sociais, tais como são elaboradas por diversas categorias de agentes.
Dois artigos focalizam aspectos da dimensão internacional da história das disciplinas sociais no país. A partir da análise de fontes documentais e de entrevistas, Sergio Miceli estuda as relações entre a Fundação Ford e os cientistas sociais no Brasil. Longe de qualquer maniqueísmo, Miceli oferece elementos que permitem compreender as lógicas subjacentes aos dois pólos de uma história que, desde o início dos anos 60 -no contexto da Guerra Fria e do governo militar-, possibilitou a constituição de um vínculo de solidariedade entre a agência financiadora e seus clientes locais, contribuindo para a configuração de um espaço de reflexão crítica sobre a realidade social e cultural nacional. Já Heloísa Pontes propõe uma forma de estudar as relações entre as ciências e os cientistas sociais brasileiros e não brasileiros, delineando cuidadosamente um "corpus" de análise: os textos de autores não brasileiros que se referem ao país, editados no Brasil, sob a forma de livro. Por essa via, esboça alguns "mapas do Brasil" construídos primeiro pelos "viajantes" (1930-1968) e, depois, pelos "brasilianistas" (1969-1988), o que permite visualizar redes acadêmicas e alterações temáticas e metodológicas.
Por último, dois artigos apresentam diagnósticos sobre a situação atual. Num texto que destoa do conjunto da coletânea por seu caráter mais programático que analítico, Bernardo Sorj propõe uma visão pessimista, debilmente baseada em demonstrações empíricas. Seu trabalho contrasta especialmente com o artigo de abertura do livro, assinado por Sergio Miceli, que descreve o cenário institucional das ciências sociais no país. O quadro traçado por Miceli dá relevância ao fato de ser o Brasil talvez o único dos países latino-americanos (e um dos poucos da periferia) capaz de mostrar semelhante êxito no processo de institucionalização das disciplinas sociais. Sua análise é reveladora de uma das peculiaridades do caso brasileiro: aqui, ao contrário de muitos países centrais, a criação das condições de existência de uma nova elite intelectual ligada às ciências sociais foi inseparável da constituição de um sistema de investigação, de pós-graduação e de financiamento, no qual o Estado e as relações entre ele e os cientistas sociais tiveram papel fundamental.
Este texto sugere desde o início uma questão que perpassa todos os artigos: a definição de fronteiras entre as ciências sociais e outras dimensões da vida social. Mostrando a complexidade das relações entre "disciplinas", oferecendo elementos para compreender oposições teóricas e políticas, a criação e transformação de várias instituições, alguns traços das relações entre regiões do país e entre o país e o "exterior", os textos reunidos nesta obra ajudam a entender a gênese social e cultural não apenas do mundo dos cientistas sociais no Brasil, mas também do próprio Brasil, que eles contribuíram para criar ao construí-lo como objeto. Relação paradoxal que exige da parte das ciências e dos cientistas sociais que estudam o Brasil um esforço de objetivação, condição de toda reflexão crítica sobre sua própria atividade e sobre a realidade nacional na qual se define sua existência social.

NOTA
1. Miceli, Sergio (org.) "Ciências Sociais no Brasil", vol. 1, Idesp, ed. Vértice, São Paulo, 1989.

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