São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Elogio da imperfeição

MARIAROSARIA FABRIS
EDITORA 34 LETRAS/EDUSP, 320 PÁGS.

R$ 12,35

Em "Cinema de Lágrimas", um ator, em busca da última fita a que sua mãe assistiu antes de suicidar-se, revê uma série de melodramas latino-americanos, acompanhado por um estudante de cinema. Enquanto prossegue em sua busca pessoal, ecos e imagens de um outro cinema se insinuam no filme, seja nos trechos de aulas captados de passagem desde os corredores da Universidade Autônoma do México, seja nos cartazes percorridos pela câmera no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro: a nova cinematografia latino-americana. Localizada a fita, o protagonista, à procura do seu companheiro de jornada, encontra-se numa sessão de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" -visivelmente emocionado diante da nova realidade com que se depara. Deste modo, ao superar o quadro individual para entrar no coletivo, liberta-se do fantasma do passado e descobre um novo sentido para a vida.
O filme de Nelson Pereira dos Santos termina exatamente onde inicia o livro de José Carlos Avellar. O foco de seu interesse, como o próprio título indica, é o novo cinema latino-americano -fragmentado em suas particularidades, mas recomposto para formar um grande mosaico.
A busca dessa unidade começa, na própria escrita do livro, pela adoção simultânea do português e do espanhol. Num primeiro momento, parecem estranhas as citações em espanhol. Mas quando este se insere, sem aspas, na linguagem do autor e se amalgama com o português, entende-se que o objetivo era o de estabelecer um diálogo sem intermediários. A língua também é uma ponte entre as culturas latino-americanas assim como o passado ibérico que irmana os vários povos e o subdesenvolvimento.
A aceitação do subdesenvolvimento como traço peculiar, a intenção de retratar a realidade como ela é, de opô-la a uma realidade "passada a ferro" e engomada -como a dos melodramas mexicanos e argentinos de matriz hollywoodiana perseguidos pelo protagonista de "Cinema de Lágrimas"-, são características desse novo cinema latino-americano.
A uma técnica apurada, prefere-se um conteúdo problematizador; a "uma perfeição sem sentido", prefere-se, nas palavras de Fernando Birri, "um sentido imperfeito". Segundo Julio García Espinosa, a idéia de imperfeição surgiu"quando começamos a ver os filmes neo-realistas italianos. O exemplo próximo -o cinema latino-americanos dos anos 40 e 50- parecia distante. A produção apoiada no melodrama e nas comédias musicais se encontrava mais próxima do mundo do cinema que das características do mundo de verdade em que estávamos vivendo: nosso cinema conseguira então uma fórmula capaz de conquistar o interesse do público e desta forma um mercado próprio. Mas, na tela, nestes filmes, não nos sentíamos nós mesmos, ou seja, éramos nós, mas, ao mesmo tempo, não éramos nós: uma parte nossa não se via. O neo-realismo mostrou como filmar essa face oculta; podíamos nos reconhecer, podíamos nos aceitar na tela" (pág. 208).
Algumas questões se colocam a partir dessa afirmação de García Espinosa. Em primeiro lugar, a de um novo sentido estético. Era necessário se insurgir contra o conceito burguês do "belo", de matriz metropolitana; era necessário reeducar os cineastas e, consequentemente, o público e os críticos; ou, como dizia Glauber Rocha, "descolonizar o gosto colonizado pela estética comercial/popular (Hollywood), pela estética populista/demagógica (Moscou), pela estética burguesa/artística (Europa)" (pág. 142).
A recusa de qualquer modelo, por parte de Glauber, está implícita também na relação que o cinema latino-americano estabeleceu com o neo-realismo cinematográfico italiano -reconhecido por todos os cineastas como fator básico de formação (muitos deles até estudaram na Itália). E o neo-realismo, de fato, não forneceu modelos, mas uma postura ética; mostrou como se debruçar com um novo olhar sobre a realidade nacional, sobre o mundo popular. Como afirma Birri, "não se tratava de repetir, de copiar tal e qual, uma experiência italiana bem-sucedida. Mas, sim, de saber, de provar para nós mesmos até que ponto era possível uma assimilação de toda essa experiência vital, com a qual a atitude neo-realista tonificou a arte cinematográfica (atitude que, não me cansarei de repetir, é, antes, moral do que um estilo cinematográfico)" (pág. 43).
Não se tratava de tentar desenvolver nos países latino-americanos o neo-realismo, segundo as características de cada um, mas de vê-lo ao lado de outros dados, como um elemento deflagrador a mais, nessa busca incessante de uma identidade nacional. Busca em que era necessário partir da estaca zero para se livrar do colonialismo cultural. Contudo, é claro que, na construção dessa nova realidade, foram aproveitadas as experiências anteriores de outras artes -a música, a literatura, a pintura etc.-, que contribuíram para a formação do novo olhar, a ser lançado sobre a realidade nacional.
A maneira como José Carlos Avellar aproxima esses vários fragmentos de discursos para, no fim, constituir um discurso maior, é cativante. Cada teoria remete a outra(s) como numa caixa de eco: "(...) cada um de nossos textos teóricos foi apanhado pelo seguinte como um impulso para seguir pensando. Para retomar uma antiga idéia, ou menos que isso, uma impressão difusa esquecida numa entrevista ou debate, guardada num canto da cabeça. A idéia de um "cine junto al pueblo" não nasce do cinema imperfeito, a "estética da fome" não nasce da brevíssima teoria de Birri, o "cine imperfecto" não nasce do "tercer cine", a dialética do espectador não vem da estética do sonho. Nenhum deles é continuação, contestação ou ampliação do outro. Todos se superpõem. Discutem experiências particulares, mas próximas, vizinhas, simultâneas, no enfrentamento de um problema comum: o subdesenvolvimento, o neocolonialismo, a sub-realidade" (pág. 236).
Dessa forma, o discurso teórico do livro se constrói a partir das palavras dos próprios cineastas, mas não se trata de um mero alinhavar de idéias e sim de um refletir junto com os autores. De fato, Avellar não é apenas um compilador atento e, embora na maioria das páginas dê voz aos cineastas, ele também se coloca, assume um partido, ao misturar sua língua (o português) com a dos outros (o espanhol, na maioria dos casos). Isso fica patente nos parênteses que literalmente abre no corpo do texto (assinalados por colchetes) para resumir, comentar e aprofundar os argumentos em discussão; para retomar algumas questões e introduzir novas sugestões. Isso também acontece em muitas das notas que, em vez de serem só referenciais, elucidam alguns assuntos.
Avellar lança assim uma ponte clandestina entre as várias cinematografias. Ponte clandestina, porque sempre se tratou de um cinema de guerrilha, que surgiu à margem daquele industrial. Um cinema que, se não pôde transformar a sociedade como era sua intenção, conseguiu, ao menos, questioná-la; levá-la a refletir sobre uma realidade outrora ignorada; reconhecer-se no subdesenvolvimento e aceitar a própria imperfeição.

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