São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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O Newton da história

FRANKLIN DE MATOS
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 512 PÁGS.

R$ 36,50

Grandeza e Decadência dos Romanos
Montesquieu
Tradução de Paulo Matos Peixoto Paumape, 164 págs.
R$ 17,00

As "Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de Sua Decadência" foram publicadas em 1734, a meio caminho entre os livros que celebrizaram Montesquieu: as "Cartas Persas" (1721) e "O Espírito das Leis" (1748). Ao atentar para esta sucessão de obras-primas, tão heterogêneas entre si, o leitor talvez possa perguntar-se: existiria entre elas algo de comum?
A pergunta não é descabida, pois, além de muito diferentes uns dos outros, os textos acima, cada um à sua maneira, parecem recusar até mesmo os contornos precisos de um gênero determinado. Já se observou que "O Espírito das Leis" hesita entre a filosofia do direito e o panfleto antiabsolutista, entre a sociologia e a legislação ideal, enquanto as "Cartas" oscilam entre o ensaio e a ficção; e, se é verdade que as "Considerações" pertencem claramente à historiografia, não é menos verdade que alguns se queixaram de seu suposto inacabamento, como é o caso de Voltaire, que as julgava menos um livro que "uma engenhosa tábua de matérias".
As "Cartas Persas" consagraram definitivamente um tipo literário e um procedimento heurístico. O tipo é o do viajante -aqui, senhor persa, em outra parte, filósofo chinês, sábio otomano ou selvagem americano- que chega à Europa vindo de terras distantes. O procedimento é interrogar os hábitos europeus por meio deste forasteiro "inocente". É assim que, nas "Cartas", o olhar do persa -do outro- relativiza a cultura européia e, ato contínuo, obriga o europeu a reconhecer as demais culturas, igualmente relativas, mas com todo direito ao seu modo de ser. Segundo uma expressão de Starobinski, a boa notícia que as "Cartas" trouxeram foi a da "facticidade universal", quer dizer: os homens são produtos de diferentes climas, educações, religiões, governos etc.
Frente à multiplicidade da história, o século 17 definiu, como se sabe, dois tipos de postura. O ceticismo fazia dessa multiplicidade uma prova do caráter absurdo e irracional da vida humana, enquanto o cristianismo a explicava a partir dos secretos e tortuosos desígnios da providência divina. Depois de um longo e paciente trabalho, Montesquieu formulou um novo método para orientar-se em meio a essa inesgotável variedade.
Antes de mais nada, reconheceu que as coisas humanas não possuem a estabilidade e regularidade da natureza, pois os homens, além de sujeitos ao erro, são dotados da capacidade de burlar tanto as leis naturais quanto aquelas que eles mesmos se prescrevem. O que não quer dizer que, ao formulá-las, sejam conduzidos unicamente pela sua fantasia. "A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa todos os povos da terra; e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares onde se aplica essa razão." Assim, se soubermos interrogar as leis, veremos que elas expressam uma intenção ou, se quisermos, um espírito, "que consiste nas diversas relações que (...) podem ter com diversas coisas". Por isso as leis humanas não são absolutas, mas, por definição, relativas, sujeitas ao tempo e ao espaço, ao conjunto de condições de uma sociedade. Para compreendê-las, é preciso submetê-las à rede de relações que lhes dá sentido: à natureza e ao princípio do governo; às condições físicas do país, ao clima, à qualidade, situação e grandeza do solo; ao gênero de vida dos povos; ao grau de liberdade que pode tolerar a constituição; à religião e ao número dos habitantes, às suas inclinações, às suas riquezas, ao seu comércio, a seus costumes e maneiras etc.
Dentre todos esses fatores, os mais importantes, aqueles que prevalecem sobre os demais e devem ser especialmente considerados pelo legislador, são a natureza e o princípio de cada governo. Como se sabe, Montesquieu distingue três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico. Faz parte da natureza do governo republicano que o povo, ou parte dele, tenha o poder soberano; é próprio do monárquico que apenas um governe, mas mediante leis fixas e estabelecidas; e é da natureza do governo despótico que um só, sem lei nem regra, arraste tudo por sua vontade e caprichos.
Se a natureza de um governo é aquilo que o faz ser o que é, seu princípio é aquilo que o faz agir. Em cada caso, esse princípio é uma paixão humana específica: o medo é a mola que faz mover o despotismo, a honra, a monarquia, e a virtude, a república (contanto que a virtude seja definida em termos políticos, como "amor da pátria e da igualdade"). É por isso, insiste Montesquieu, que as leis de um país raramente convêm a outro. É por isso ainda que não adianta introduzir numa monarquia um republicano virtuoso ou, numa república, o bom súdito de um monarca; este teria demasiado zelo por seu próprio interesse, ao passo que o outro pareceria rigorista em excesso.
Neste sentido, "Grandeza e Decadência dos Romanos" pode ser visto como uma espécie de capítulo antecipado da grande obra de 1748. Se o providencialismo cristão via na ascensão e queda do Império Romano os desígnios secretos de Deus -por exemplo, a preparação do universalismo da Igreja-, Montesquieu explica a história de Roma pela "natureza das coisas", quer dizer, por meio de leis que lhe são sempre imanentes. Todo Estado possui um objetivo geral, que é o de se conservar e, ainda, um objetivo que lhe é próprio. Se o de Esparta, por exemplo, era a guerra, e o de Marselha, o comércio, o objetivo particular de Roma era o engrandecimento. De conquista em conquista, Roma aumentou, assim, seu território e mergulhou no luxo, o que destruiu sua moral cívica e levou ao aparecimento do poder centralizador e autoritário. Como já se disse, a história de Roma mostra exemplarmente de que modo uma república degenera e torna-se Estado despótico, e de que modo esse Estado excede suas próprias forças e acaba se arruinando.
Além de contestar que a história humana seja governada por uma sabedoria transcendente, Montesquieu relativiza enormemente o papel nela exercido pelos monarcas. É famosa a tirada das "Considerações": "Se César e Pompeu houvessem pensado como Catão, outros pensariam como Pompeu e César, e a República, fadada a perecer, seria arrastada ao precipício por outras mãos". Segundo uma fórmula de grande simplicidade usada por Starobinski, se aos olhos do absolutismo religioso os grandes homens eram instrumentos da Providência, para o "absolutismo determinista" de Montesquieu eles não passam de intermediários de uma necessidade imanente.
As edições brasileiras merecem alguns reparos.
Cuidadosa a tradução da Paumape, embora o leitor sinta falta de um mínimo de notas eruditas que pudessem tornar menos árdua a leitura desse livro difícil que são as "Considerações".
As maiores reservas ficam para a edição da UnB, da qual se esperava um esforço mínimo de revisão e atualização. Não li a tradução por inteiro, mas um exame por amostragens revela que é muitas vezes imprecisa -se não nos conceitos, ao menos nas expressões (salvo engano, foi feita nos anos 60, e vai ver que aqueles não eram tempos de "zelo filológico", para usar a expressão de um exímio tradutor...). Além disso, baseia-se na edição francesa da Garnier Frères (1961) e, assim, reproduz até mesmo a datada introdução de Gonzague Truc. Datadíssima, aliás, como bem mostra a bibliografia sobre Montesquieu, cujo título mais recente é de 1940, não incluindo, portanto -para ficar nos exemplos mais à mão-, os estudos de Groethuysen, Althusser e Starobinski.

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