São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Conhecimento confiável

OTÁVIO BUENO

Thinking Things Through: an Introduction to Philosophical Issues and Achievements
Clark Glymour
The MIT Press, 382 págs.
US$ 32.50

Muitos são os textos destinados a introduzir seus leitores no intrincado universo das questões filosóficas. Poucos, todavia, realizam semelhante tarefa apresentando, simultaneamente, um exame do desenvolvimento histórico de questões centrais, que há séculos têm preocupado os mais variados pensadores, e uma discussão da natureza das realizações obtidas ao longo desse processo. Ao estudante da área -embora não menos do que ao profissional-, de uma forma ou de outra, paira sempre a questão de saber o que mais, além de sua própria história, a filosofia nos legou.
Uma resposta a semelhante indagação é apresentada e defendida, com veemência, por Clark Glymour em "Thinking Things Through". No seu entender, uma longa tradição de pesquisa filosófica auxiliou a criar, em nosso século, amplos domínios da investigação científica, alterando de modo decisivo seu contexto intelectual. Em certos campos, com efeito, a tentativa de responder a determinadas questões filosóficas gerou teorias tão ricas e detalhadas que, de certo modo, acabariam por formar a base de diversas disciplinas científicas. A favor de sua tese, Glymour menciona e investiga os exemplos proporcionados pela ciência da computação (a partir do exame secular acerca de o que vem a ser uma demonstração), pelo ramo bayesiano da estatística, pela teoria da decisão (frente ao problema de determinar o que é uma crença racional e como podemos alterar nossas crenças racionalmente), bem como pela ciência cognitiva (buscando respostas para a questão acerca da natureza e estrutura de nossa mente).
A seu modo, alguns aspectos dessas questões são considerados nas três partes que compõem o livro, dedicadas respectivamente à idéia de demonstração, ao exame de problemas epistemológicos e a questões sobre a natureza da mente. De maneira natural, no entanto, são estabelecidas nítidas inter-relações entre cada uma delas. Com efeito, em certa medida, os vários usos e as diversas acepções que a noção de computação (e conceitos correlatos, como o de algoritmo) recebeu ao longo dos séculos estruturam a linha argumentativa básica da obra.
Esse aspecto, entretanto, não é em absoluto fortuito. Em certo sentido, o livro pode ser visto como um longo argumento para conduzir o estudante ao exame de questões filosóficas numa abordagem particular, em cujo interior se inserem as próprias pesquisas do autor. Professor de filosofia nas universidades de Pittsburgh e Carnegie-Mellon, há anos Glymour tem desenvolvido trabalhos de grande originalidade na interface entre modelagem estatística, inteligência artificial e filosofia da ciência.
Dessa forma, não é por acaso que, ao discutir o problema da natureza do conhecimento, ele salientará, diferentemente de uma longa tradição de análise (que remonta, em certa medida, aos primórdios da própria filosofia), não o estabelecimento de condições necessárias e suficientes para que certo sistema de informações presumivelmente proporcione conhecimento (devendo, por exemplo, segundo célebre proposta, encontrar-se baseado em crenças verdadeiras e justificadas), mas enfatizará o papel daquilo que, na literatura específica sobre o assunto, se denomina "inferência confiável". (Uma literatura, cumpre notar, iniciada na década de 60 por um filósofo, Hilary Putnam, e que conduziu a um novo ramo da lógica aplicada, a teoria da aprendizagem formal, hoje desenvolvida por psicólogos cognitivos, linguistas, lógicos, filósofos e matemáticos).
Para entendermos o que há de particularmente novo nessa proposta e esclarecermos alguns de seus aspectos, lembremos que as caracterizações usuais de conhecimento exigem em geral que um método, para ser confiável, jamais tenha como resultado a afirmação da verdade de uma hipótese, exceto quando esta de fato for verdadeira, e nunca a indique como falsa, a menos que esta efetivamente o seja. (Em certo sentido, é por permitir a justificação de certa opinião que se atribui ao conhecimento uma estabilidade que a crença verdadeira, mas não justificada, aparentemente não possui; tal estabilidade, como se sabe, é crucial para a aplicação desse conhecimento, por exemplo, a situações práticas.) Semelhante exigência torna-se delicada sobretudo no contexto em que inferências indutivas têm que ser empregadas para a obtenção de conhecimento (mesmo as mais "simples", como as induções por enumeração, nas quais a partir de um número finito de casos observados, que não correspondem entretanto a todos os casos relevantes, inferimos uma determinada propriedade acerca de todos os elementos de certa população). E foi nesse contexto, como Glymour não deixa de salientar, de crítica a posições extremadas acerca da natureza do conhecimento, que diversas versões do ceticismo e do relativismo floresceram.
Ora, a proposta de Putnam (posteriormente desenvolvida por Glymour e seus colaboradores) consiste em apresentar um quadro, ainda que um tanto idealizado, em cujo interior, dadas certas condições, um cientista (digamos, investigando certa propriedade dos corvos) adote uma regra para formular conjecturas sobre os mesmos (por exemplo, que todos são pretos), de tal modo que, após um número finito de corvos observados, essa regra lhe permita chegar a uma hipótese correta a seu respeito e nela se estabilizar. (A existência de semelhante regra, em contextos gerais, é demonstrada mediante certos recursos matemáticos proporcionados pela teoria da recursão.) Diferentemente das propostas anteriores, todavia, o critério de confiabilidade de Putnam permite que o cientista em questão altere sua conjectura um número arbitrário, embora finito, de vezes. Nesse caso, mostra-se que, embora seja adotado um critério menos rígido de confiabilidade, ainda é alcançada a estabilidade, que se pretendia típica do conhecimento.
Evidentemente, semelhante apresentação revela-se um tanto simplista. Contudo, tornando-se mais complexo e sofisticado esse quadro acerca da situação do cientista, dos dados que obtém e das hipóteses que formula -de tal forma que nos aproximemos cada vez mais das circunstâncias "reais" da pesquisa científica-, os resultados matemáticos sobre procedimentos confiáveis são ainda atingidos. Desse modo, segundo Glymour, tanto um ceticismo indutivo pode ser, em certa medida, contornado (uma vez que, sob determinadas condições, é possível verificar ou falsear confiavelmente certas sentenças), como se contesta um relativismo mais radical (mostrando que há normas acerca da própria inferência confiável, não obstante a suposição de que a verdade seja relativa a determinados esquemas conceituais). Novos padrões de racionalidade são então sugeridos; padrões mais adequados às circunstâncias nas quais os agentes se encontrem sujeitos a certos limites: os limites do computável.
Além dessas propostas, no entanto, muitas outras questões são discutidas ao longo de todo o volume, salientando-se, em particular, o papel da filosofia para dar sentido a grandes projetos intelectuais que, por alguma razão, pareçam desconcertantes ou obscuros (como determinados aspectos da ciência cognitiva e dos fundamentos da física). No entanto, mesmo quando são deliberadamente violados certos pressupostos e convenções de alguma disciplina, Glymour ressalta a importância de a filosofia manter-se informada pelo próprio conhecimento científico e matemático que busca compreender.
Este livro constitui-se, com efeito, numa obra articulada e concebida de modo original, que, sem dúvida alguma, mereceria tradução entre nós. Além disso, foi bem recebido nos mercados norte-americano e inglês, não obstante tenha sido considerado "desafiador" para os que se iniciam. Esta última característica, todavia, poderia ser vista como um mérito. Afinal, a filosofia pode possuir diversas propriedades, exceto a de ser simples.

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