São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Triunfos e fracassos

VALENTIM FACIOLI

A Aventura Surrealista
Sérgio Lima Unicamp/ Unesp/ Vozes, 527 págs.
R$ 72,00

Vanguardas Latino-Americanas: Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos
Jorge Schwartz Edusp/Iluminuras, 639 págs.
R$ 49,00

O discurso vanguardista militante tende, hoje em dia, a aparecer bichado de véspera e carcomido sobre a mesa dos debates, como fruto apodrecido de uma renúncia hipócrita. As linguagens, obras e atitudes das vanguardas são oferecidas em embalagens luxuosas, travestidas de história, de grande investimento e de geral conformismo para as boas e más consciências. Consumo conspícuo, turismo aprendiz, cultura de bolso, espanto basbaque com os gênios e variadíssima sorte de anúncios assinam agora o atestado de prestígio sobrevivente de obras que já foram de vanguarda e amargam um eterno exibicionismo novidadeiro.
A resposta ambivalente das vanguardas ao fenômeno da mercantilização geral (e degradada) do mundo, nos termos de Eduardo Sanguineti, foi marcada por dois momentos constitutivos, o cínico e o heróico-patético, quer dizer, ela foi a de um "astuto artifício concorrencial" para vencer no mercado como valor novo e, portanto, mais alto, e ao mesmo tempo "a desdenhosa repulsa da própria mercantilização". Essa resposta ambivalente continua a se oferecer nos museus, nas academias, nas universidades, nas teses, nos olhos, mãos e computadores dos intelectuais-artistas de hoje e também nas lojas de leilões, nas garras dos colecionadores ricos -milionários-, como o tributo de seu triunfo, que muitos querem apenas domesticado, embora não sem nostalgias, angústias, resgates, mal-entendidos. No interior dessa enorme diferença de interesses, posturas e intenções as obras das vanguardas continuam a cumprir, apesar de tudo, funções e disfunções enquanto arte e mercadoria, fatalidade de sua natureza de centauro incurado e incurável.
Isso parece significar que a autonomia da arte na sociedade burguesa, nos últimos 50 anos, ganhou proporções jamais vistas ou imaginadas, descarrilhando as obras de arte decisivamente da práxis vital, aprofundando a diferenciação social da esfera artística como saber especial, reservando-lhe a condição de subsistema autoconsciente e auto-reflexivo, capaz de questionar a si mesmo e a outros subsistemas ideológicos e simbólicos, mas impotente para alcançar eficácia sobre os lugares de verdadeira decisão social: a economia e a política.
Ademais, a rápida implementação de novas tecnologias e a revolução permanente que o capitalismo opera sobre si mesmo -sem, aliás, alterar sua essência- como que incorporam algumas das lutas e reivindicações das próprias artes de vanguarda, como o desmantelamento da categoria de obra de arte, a criação contínua da novidade como sucedâneo do novo, o acaso criado, provocado e mediado pela previsão dos materiais e das técnicas, enquanto programa, como contrafação da verdadeira descoberta do acaso artístico. A multiplicação de técnicas e procedimentos desloca irremediavelmente a arte moderna para a condição de obsolescência, ainda que se reconheça, aqui e ali, o papel que ela desempenhou para a própria renovação das técnicas, dos procedimentos e dos materiais.
Para os mais confiantes e crédulos resta sem dúvida o patrimônio cultural, a contribuição propriamente estética, enquanto expressão, conhecimento e prazer, a dialética da negatividade, que de algum modo a grande obra de arte carrega, as contradições que ela encena de seu modo próprio para revelá-las aos homens e guardá-las como memória de sua experiência de produção e origem, de si e da sociedade, da paixão de seu autor e do contributo ético que também possa oferecer. Pensando nisso, vê-se que não é pouca coisa, pois que o fracasso das vanguardas só é visível assim hoje porque somos o futuro delas (provavelmente, de novo, sua retaguarda) e queiramos ou não, participamos de suas experiências e é nosso dever tirar consequências desse fracasso. "A lei da reflexão crescente é implacável. Quem tenta esquivar-se dela termina no cesto de liquidação da indústria da consciência", diz Enzensberger.
Como, entretanto, o caminho da arte moderna não é de fato reversível, não compete agora nostalgia, nem meio-termo administrativo, mas distinguir para compreender e compreender para tirar algumas consequências. Nesse caso, parece-me que se houve um movimento que implementou uma aventura radical na modernidade, esse foi o surrealismo. André Breton, "um dos homens realmente importantes de nosso tempo", no dizer de Mário Pedrosa, ou "herói intelectual do Ocidente", como o chamou Jean Paulhan, escrevia que "desejo que ele (o surrealismo) passe por não ter tentado nada melhor do que lançar um fio condutor entre os mundos dissociados da vigília e do sono, da realidade exterior e interior, da razão e da loucura, da calma e do conhecimento e do amor, da vida pela vida e da revolução". Não por acaso, numa imagem muito feliz, Mário Pedrosa compara o surrealismo com a guerrilha, "cuja função não é tanto vencer e empolgar como persistir para perturbar, durar para incandescer", pois o surrealismo "quis sempre ser a poesia, (o amor) e a revolta em estado permanente", para modificar o homem por dentro enquanto a revolução o modificaria por fora. A ação surrealista não tinha apenas um sentido exterior, mas também um sentido interior, pois o homem deve viver uma completude de aventura humana, fundada na experiência exterior e interior sem limites, sem repressão, a fim de que nenhum erro na interpretação do homem acarrete erro na compreensão e seja obstáculo à transformação do mundo.
Se não me engano, parece-me ser a reconstituição dessa vasta ambição surrealista o impulso e a notável energia que presidem o movimento compositivo e estudioso do livro de Sérgio Lima, "A Aventura Surrealista". Em tamanho grande, é um objeto artístico como livro, num projeto gráfico e de capa do próprio Sérgio Lima (que é também poeta e artista plástico de larga obra publicada), -mas cujo crédito está faltando-, com vinhetas e quase cem páginas de ilustrações. A capa reproduz um maravilhoso (em sentido surrealista) artesanato popular brasileiro, "Asas de Borboleta" e na contracapa uma escultura de Maria Martins, de 1949, quando a artista trabalhava sob forte influxo do surrealismo e de Breton.
O livro de Sérgio Lima é o primeiro tomo de uma abrangente pesquisa a sair em mais três tomos, de publicação futura, incluindo estudos, cronologia e bibliografia sobre o surrealismo no Brasil e nas Américas, uma antologia e também o que o autor chama de "infortúnio crítico", todos eles com ilustrações. No volume, agora lançado, está exposto o percurso dessa pesquisa realizada sob os auspícios da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Ele está organizado em duas partes, uma "Iniciação ao Surrealismo" (surrealismo ontem e hoje), com discussão breve de algumas questões e tentativa de periodização do movimento, em seus diferentes momentos ou etapas. E uma segunda parte, "Os Fundamentos do Surrealismo", vasto estudo que se debruça a expor, analisar e interpretar os grandes temas, combates e técnicas surrealistas: o amor, a arte, o automatismo e a escritura automática, a beleza, a colagem, o erotismo, a imagem.
Salvo engano, o princípio compositivo do livro parece ser o da colagem, pois o autor funciona como um guia que toma a palavra quase sempre brevemente, abre o assunto e em seguida deixa que falem muitos autores, com abundantes transcrições, diferentes ângulos de abordagem, explorando os temas por uma intersecção diacrônico-sincrônica, quer dizer, de sua história e do estado atual de seu saber, fazendo convergir as discussões e diferenças para a iluminação surrealista de seu tratamento.

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