São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Triunfos e fracassos

VALENTIM FACIOLI

Assim, o livro é uma súmula extraordinária dos fundamentos do surrealismo e ao mesmo tempo de algo mais, pois é até possível em diferentes momentos fazer leitura diferente da que faz Sérgio Lima. Aí tanto vemos a vantagem de uma abertura, democrática, que viabiliza contrapontos, quanto o entusiasmo militante do autor que revela sentidos inesperados e inusitados, carreando águas para o seu moinho. Mas o livro, tratando da aventura surrealista é em si mesmo uma aventura para o leitor, exigindo energias e investimentos para deslindá-lo, impondo um desafio, oferecendo entretanto compensações extraordinárias, especialmente no sentido de que a dialética dessa aventura da modernidade que é o surrealismo constitui uma experiência que o homem atual, se culto e democrático, não pode descartar.
No caso brasileiro, o livro é verdadeiramente pedagógico, estando, contudo, longe de ser didático, pois o surrealismo por aqui é, mesmo para gentes ilustradas, um simples caso de aberração, ginástica mental incompatível com nossas necessidades vitais etc., apesar de sermos um país surrealista... O livro de Sérgio Lima também nos pergunta que horas são e faz como o surrealismo com que o homem e a sociedade atual se ponham face a face consigo mesmos.
Outra não é a direção do livro também recém-saído de Jorge Schwartz, "Vanguardas Latino-Americanas - Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos", embora seja muito diferente do de Sérgio Lima, quanto ao tom, à construção e ao modo de produção de sentido. Volume de concepção gráfica sofisticada e realização editorial complexa, reúne, como o outro, a dupla peculiaridade de ter sido produzido no interior da universidade pública paulista e por ela ter sido co-editado.
O livro de Jorge Schwartz, originariamente tese de livre-docência, está organizado em dois blocos, sendo o primeiro constituído de textos programáticos das vanguardas latino-americanas dos anos 20/30, englobando contribuições do Chile, Argentina, Brasil, México, Peru, Porto Rico, Venezuela, Nicarágua, Cuba, Uruguai, Equador. O segundo bloco é uma ordenação temática de textos, que contempla em parte esses mesmos países, em parte outros e se abre para a discussão dos "ismos", das tensões ideológicas, das preocupações e debates das identidades nacionais etc. É certo que num livro como esse alguém poderia cobrar a ausência de alguma coisa ou a inclusão de outras, mas o fato é que Jorge Schwartz incluiu praticamente tudo o que houve de relevante no período histórico, com a ênfase que lhe permitiu a pesquisa e sua interpretação.
Mas penso que, nesta altura da nossa hora nacional, das ainda precárias relações culturais das gentes do Brasil com nossos irmãos latino-americanos de fala castelhana, esse livro preenche não uma lacuna, mas um abismo, tornando acessíveis ao leitor brasileiro os textos e os debates originais, como se deram. Mas também as paixões artísticas, sociais e nacionais, as discussões dos grandes problemas, impasses e contradições vividos pelas frações cultas modernizantes da Latino-América ressoam dali, com seus horizontes e limites. E o volume está ainda enriquecido com o ensaio inicial de Alfredo Bosi, analisando e interpretando as vanguardas latino-americanas, com notável e sensível perspectiva atual, e mais a introdução do autor e uma quantidade inacreditável de notas informativas, de esclarecimentos de contextos e referências, publicações, autores etc.
Não é difícil crer que, a médio prazo, esses livros fecundarão um intercâmbio de pesquisas de fôlego semelhante imprescindíveis para o avanço no conhecimento da modernização artística e cultural destas Américas, com desdobramentos em literatura comparada e, principalmente, com a respectiva desprovincianização e mudanças na direção dos olhares. Tivemos nossas próprias preocupações e proposições vanguardistas, realizamos notáveis obras de arte e nossos problemas, impasses e contradições, sendo regionais e nacionais são também constitutivos internacionais do desigual e combinado que presidem a expansão capitalista em seu processo permanente e inacabado de modernização.
O leitor brasileiro tem agora ao alcance dois livros, os quais, aliás, se completam com o terceiro volume de "América Latina: Palavra, Literatura e Cultura - Vanguarda e Modernidade", organizado por Ana Pizarro (Memorial da América Latina/ Ed. Unicamp, 1995) que, sendo histórias peculiares e a seu modo da arte moderna, põem e repõem em cena o repertório necessário para a continuação do debate bem-informado sobre a significação desse legado da grande aventura da modernização artística e cultural deste século. Inclusive porque as vanguardas pesquisadas e publicadas institucionalmente exigem, ainda uma vez, que sua discussão suponha certa reabertura de seus momentos cínico e heróico-patético. Não como relíquia ou curiosidade, ou história morta que mãos pretensamente limpas escrevem, mas para que a reflexão atual, incorporando triunfos e fracassos, faça viva a experiência histórica da luta contra a mercantilização crescente, que está acirrada e ameaça cada vez mais a sobrevivência da própria memória das opressões. Talvez as vanguardas ainda possam ser um fio indicador de que muito se perdeu pelos descaminhos do século 20 e funcionem, mesmo com luz frágil sobrevivente no comércio, como sinal vermelho para o homem danificado de hoje.

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