São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Mamonas cantam medo da aldeia global

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há uma febre entre nossas crianças. A amiga nos telefona e diz: entrei numa loja e perguntei pelo CD dos Bananas Assassinas.
Não, eram Mamonas Assassinas. As meninas daqui de casa também já estão ouvindo. No princípio pensei que era apenas um fascínio pelos palavrões e a sujeira, um lado punk que quase toda criança tem.
Money que é good nóis num have/ Se nóis havasse nóis num tava aqui/ Playando/ Mas nóis precisa de Worká/ Money que é good nóis num have/ Se nóis havesse nóis num tava aqui/ Workando/ O nosso work é playá.
Essas linhas lembram o arquiteto Falcão, que se lançou como cantor e fez sucesso com "I am not dog não". Entre ele e os Mamonas há um elo visível. De fato, eles não são dog, ninguém é. Mas cantam a canção do underdog, do azarão, do derrotado no processo de globalização mundial.
Para começar, essa relação com a língua inglesa que tanto fascina as crianças. O idioma dominante que conquista o mundo numa marcha avassaladora, navegando pela Internet, pelos canais de TV e pela música popular, perde aqui, nos Mamonas e em Falcão, todo seu poder ameaçador.
Na verdade, despojado da pronúncia exata de suas palavras, das leis gramaticais, ele é engolido pelo nosso idioma e se transforma apenas num instrumento que amplia o vocabulário. Falcão e os Mamonas, com esse artifício, fazem o mesmo que os três porquinhos que construíram uma casa de cimento ou o caçador que salvou a avó de Chapeuzinho Vermelho. Eles derrotam o lobo mau, eles comem o lobo.
Mas os perigos não param no idioma. Globalização significa consumo universal:
"O pior de todas é a minhas mulher/ tudo que ela olha a desgraçada quer:/ televisão, microndas, micro system, microscópio,/
limpa vidro, limpa-chifre/ Facas Ginsu". Diante da proposta de consumo meio inalcançável, de novo reaparece o azarão, o derrotado:
"Eu sou cagado veja só como é que é:/ Se dá uma chuva de Xuxa, no meu colo cai Pelé."
Engolido o idioma, resta portanto vencer a barreira do consumo:
"Mas comigo ela não quer casar/ Na Brasília amarela com roda gaúcha/ Ela não quer entrar/ Feijão com jabá/ a desgraçada não quer compartilhar".
Adiante, a letra de "Pelados em Santos" mostra que mesmo comprando um Reebok e uma calça Fioriucci não foi possível conquistar a mulher "very, bery beatiful.
Se o idioma e o consumo forem equacionados, restará ainda um novo obstáculo. A globalização não reorganiza apenas a linguagem universal nem o estoque de produtos que teremos de usar, de Nova York a Nova Deli, ela é uma reestruturação do charme, do que é atraente ou não, in ou out.
Tanto os Mamonas como Falcão transplantam para o estilo, a técnica que usaram para engolir o idioma. Ah é assim o inglês? Ah é assim o estilo? Vamos comer os dois e deixar alguns fiapos na boca para que ninguém se engane com nosso gesto antropofágico: perdemos a batalha mas vamos levar todos para o fundo, no mesmo abraço. Somos todos ridículos, "comendo gergelim ou aipim comprando no crediário da Casa Bahia ou no chopis centis.
É no entanto em "Lá vem o Alemão", que a angústia desse universo global parece ganhar todas as suas cores:
A kombi quebrada lá na praia e você/ de mini saia/ Dando bola para um alemão/ O alemão de carro conversível/ Eu mexendo nos fuzível, nem vi quando/ Você me deixou/ - Só porque é lindo, loiro e forte/Tem dinheiro e um Escort,/ Como Modess, você me trocou.
Crianças gostam de pombas que fazem cocô nas nossas cabeças, cachorros que comem a própria mãe, camelos que têm as bolas em cima das costas.
Mas não são alheias ao drama dos Mamonas e de Falcão, num mundo em que uma estranha língua, estranhos objetos e um estranho charme "carregam consigo tanto lá fora como aqui a possibilidade de uma terrível epidemia: a exclusão".
Num tempo em que o homem comum, se sente às vezes, analfabeto por não dominar o inglês, sem instrumentos por desconhecer a informática, os Mamonas Assassinas são um consolo -uma espécie de ponte entre o passado rural e a globalização tecnológica.
Mas um consolo limitado, porque para demolir esse universo de valores foi preciso aceitar alguns dos seus preconceitos contra o suburbano, o caipira. Para explodir o sofisticado templo de consumo, nossos terroristas amarraram a bomba no seu próprio peito.
O suicídio coletivo se consuma na música "Débil Mental", essa sim cantada toda em inglês, com a pronúncia dos intelectuais refinados que aqui e ali recheiam suas frases com um anglicismo. Aí os Mamonas Assassinas não estão mais brincando de engolir o inglês, mas assumem que ele nos dominou a todos com sua pronúncia e gramática:
"Can't you understand, boy?/ So, shake your head/ So, shake your head, sucker/ No more ideas, it's over!". O sucesso de Mamonas Assassinas mais do que apenas um grito de libertação de crianças querendo dizer o proibido, uma angústia diante da globalização, é também um libelo antiintelectual.
Quem sabe não estamos diante da revolução cultural brasileira que em vez de mobilizar as crianças contra Bethoven, volta seus canhões para a beleza melódica, a poesia de algumas letras que reinventam o mundo e nos integram nele?
Quem sabe o sucesso de Mamonas não é o início da tomada triunfal dos museus, onde adolescentes farão pipi nas obras-primas como proletários enfurecidos invadindo um tempo da burguesia?
Olho para as meninas desconfiado. Seriam guardas vermelhas me examinando no almoço? Posso abrir diante delas o volume de capa verde de Drummond, "Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham/ numa estrada de pó e esperança?"

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