São Paulo, quinta-feira, 7 de dezembro de 1995
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A agonia dos institutos de pesquisa de São Paulo

ANTÔNIO CARLOS PIMENTEL WUTKE

O fim do século passado e o início deste assinalam um dos períodos mais fecundos da história de São Paulo. Entre outros acontecimentos notáveis, destaca-se a emergência de muitos de seus institutos de pesquisa e, consequentemente, o delineamento do sistema de sustentação científico-tecnológico do desenvolvimento do Estado e de defesa da saúde pública.
Tal registro não parece natural, ainda mais considerada a época, uma vez que reconhecidamente a ciência sempre foi -e ainda é- um corpo estranho na sociedade brasileira. Isso se explica, segundo alguns estudiosos do assunto, pelo espírito prático-imediatista e pela cultura retórica-literária que se desenvolveram entre nós em função de vários fatores, dentre os quais a repressão exercida pela metrópole durante o período colonial.
A maioria das pessoas, portanto, tende a avaliar da ciência apenas o seu aspecto utilitário, desconsiderando a outra sua face, aquela indissociável do complexo cultural. E assim não percebe que a ciência constitui um processo -e não apenas um produto- que encerra uma corrente de pensamentos, uma dinâmica e uma conduta de ação próprias.
Estabelecida, pois, a conveniente perspectiva histórica, infere-se que os institutos de pesquisa de São Paulo nasceram essencialmente da convergência, da associação de cientistas de escol e de sólidas fundações humanísticas e humanitárias com governantes de ampla visão e formação de estadista.
Algumas dessas personalidades eram pesquisadores que transitavam nas fronteiras do conhecimento científico na fase épica da medicina experimental, do desbravamento da microbiologia, do início da experimentação agrícola, da redescoberta das leis de Mendel. Outras eram empresários, políticos e administradores, mais ligados à chamada vida prática, mas com suficiente lastro cultural para se alçarem acima do limitado espírito prático-imediatista.
Não foi por acaso que o mesmo conselheiro Rodrigues Alves, que no Estado criou o Instituto Butantan, associado às figuras exponenciais de Adolpho Lutz e Vital Brasil, apoiaria na República, com férrea determinação, a luta de Oswaldo Cruz para vencer a febre amarela, sanear a capital e fundar o Instituto de Manguinhos, um dos momentos culminantes da nossa história científica.
Por suas presenças constantes ao longo deste século e suas inestimáveis contribuições para o progresso e o bem-estar da comunidade, os institutos de pesquisa acabaram se incorporando ao cotidiano de gerações de paulistas -e também de brasileiros de outros Estados- na configuração de instituições sempiternas. Infelizmente, porém, os institutos de pesquisa também morrem.
E morrem ainda que possam aparentemente sobreviver na exterioridade de suas edificações, de seu instrumental desativado ou canhestramente manejado, das cercas e alambrados que demarcam seus campos experimentais. Morrem, seguramente, quando se apaga a última chama de ideal, quando se desvinculam de suas vocações naturais e históricas, quando perdem a identificação de suas missões com o atendimento dos direitos sociais coletivos.
Morrem quando se lhes negam os recursos essenciais ao trabalho científico e tecnológico sério, capaz e persistente. Quando são impedidos, em resumo, de se manterem dedicados ao exercício permanente de investigação científica; aptos, portanto, a substituir pela ação organizada e pela antecipação dos problemas a resolver as improvisações que o eminente cientista Arthur Neiva caracterizava como "ciência de acampamento", mobilizada às pressas para enfrentar eventuais calamidades.
Os institutos de pesquisa de São Paulo ainda não morreram, mas estão em estado agônico. Paradoxalmente, em que pesem as passadas contribuições e a sua crucial importância presente e futura, enfrentam um pertinaz processo de desmantelamento, particularmente acentuado nesta década.
Sujeitados a orçamentos progressivamente amesquinhados, enredados numa teia burocrática retrógrada, asfixiante e coercitiva, destituídos de autonomia administrativa e financeira, privados de seus fundos de pesquisa, reservas técnicas que asseguravam o fluxo vital de suas atividades, submetidos a políticas salariais distorcidas e até perversas, que se colocam em contraposição a compromissos programáticos do próprio governo, caminham os institutos para o seu aniquilamento como se fossem -mais do que inúteis- instituições perniciosas e indesejáveis a serem desmontadas.
Nesse processo de desertificação, o pessoal de apoio técnico, operacional e administrativo aos magotes abandona os institutos em busca de uma vida menos sofrida, senão da própria subsistência.
Os pesquisadores mais capacitados e experientes, justamente dos quais se esperava a orientação e a formação das novas equipes, no inexorável e natural processo de renovação, precocemente estão se aposentando. Dispersam-se inestimáveis bagagens de conhecimentos e de experiências e investimentos do próprio Estado -vale dizer, da sociedade- na sua formação e capacitação.
E ao tomarem essa dura decisão ainda têm mais o desgosto de saber da absurda intenção de dilapidação do patrimônio histórico, cultural, científico e funcional de seus institutos, oferecidos à venda para equilibrar o erário -de modo frontalmente conflitante com o artigo 272 da Constituição Estadual- como se fossem terras devolutas ou inúteis taperas abandonadas.
E enquanto se pretende praticar esse inaudito ato de lesa-sociedade, afrontosamente campeia a solerte impunidade dos malversadores do dinheiro público! Oxalá não tenham ainda os institutos de clamar à sociedade o direito de um julgamento justo pelos serviços centenários que não mais puderem prestar...

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