São Paulo, quinta-feira, 7 de dezembro de 1995
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Helicópteros

OTAVIO FRIAS FILHO

A mentalidade empresarial venceu. A atividade lucrativa, vista no passado com suspeita, muitas vezes considerada intrinsecamente imoral, passa a ser a medida de todas as coisas. Os jovens pensam como empresários. Como disse uma amiga, agora os banqueiros são a sociedade civil. São eles o embrião da nova classe que passa por cima de Estados e nações, sobrevoando a multidão de excluídos.
Seu veículo não é o avião, como nas risonhas décadas de 50 e 60, e sim o mais perigoso dos meios de transporte jamais concebidos pelo homem, o helicóptero, um aparelho que o maior dos gênios, Leonardo, desistiu de inventar. Com seu aspecto alienígena, com suas rasantes, com sua mobilidade incerta e temerária, o helicóptero é o símbolo da nova economia, a um tempo racional e imprevisível.
O aparelho mereceu uma saudação, como se fosse uma das autoridades presentes, no discurso de FHC na inauguração da gráfica deste jornal. Como todo vitorioso, a nova classe (como chamá-la? homens-helicóptero?) traz consigo uma ideologia e essa ideologia é de um frenético otimismo, o que empurra seus críticos para o papel antipático, embora perigosamente prazeroso, do pessimista.
Numa manobra retórica nada menos que formidável, os críticos da mentalidade empresarial foram subitamente deslocados: suas ilusões se ocultavam no passado, não no futuro; sua política era 90% demagogia; suas convicções eram jogos de palavras; seus bons sentimentos, uma maneira cômoda de todo mundo enganar todo mundo. Pode-se dizer que o humanismo passa por uma das mais devastadoras críticas que já se abateu sobre ele.
Mas não é por ser profundamente realista, por expor o que era antes encoberto pela hipocrisia dos bons sentimentos, que a mentalidade da nova classe não gera suas próprias fantasias e ilusões. Aí não há propriamente novidade e basta considerar a literatura empresarial, de Dale Carnegie a Bill Gates, para constatar o esforço de Sísifo em conciliar felicidade e lucro, lucro e moral.
Vejamos, por exemplo, o caso da livre competição, uma antiga idéia que figura com destaque na mentalidade emergente. A expectativa é que quanto mais livre for a concorrência, melhor será o desempenho do conjunto, pois cada melhora obtida compele os concorrentes a melhorar também ou perecer. O resultado é que os custos baixam e os produtos se aperfeiçoam e diversificam.
A informática permite que a diversificação possa ocorrer até o infinito, de modo que teríamos o melhor dos mundos: produtores, felizes e criativos, vendendo um universo de utilidades variadas para consumidores livres diante de todas as escolhas possíveis. Mas há um grau de saturação nas escolhas; a partir de determinado ponto, as opções já não significam nada e a liberdade é tragada pelo acaso.
Cedo ou tarde a consequência da competição livre é equalizar todos os processos, igualando os desempenhos para instalar o paraíso, não da imaginação, mas o seu contrário: um mundo onde tudo é igual debaixo das embalagens as mais diferentes, onde nada muda sob a aparência de mudança fervilhante. Esse é o sentido de outra idéia emergente, a de que a história acabou. O realismo econômico está cheio de contradições e só isso já justifica não aceitá-lo sem críticas.

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