São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Do Brás ao Leblon

JOÃO SAYAD

Para definir um paulista, precisamos saber o que é um carioca. O paulista é a negação do carioca. Aqui se trabalha, lá vamos à praia; aqui chove, lá faz sol; o carioca é simpático, o paulista, formal.
Desde 74, quando o Rio deixou de ser efetivamente a capital brasileira e começou a perder importância econômica e política, a definição de paulista ficou esmaecida, perdeu a nitidez. E se transformou em saudades -onde está o Rio que inspirou tanto bairrismo nos paulistas? Onde os paulistas vão colocar seu amor e rivalidade sem o Rio-capital, dos políticos, dos artistas e das mulheres bonitas?
O ministro Rubens Ricupero, paulista e paulistano da gema, nascido e criado no Brás, tem escrito por várias vezes nesta coluna sobre um seminário do Instituto Fernand Braudel que tenta resolver o seguinte enigma: por que o setor público paulista está em crise quando aqui está o mais próspero setor privado e a sociedade civil mais organizada do país?
Também sou paulista da gema. Falo italiano, apesar dos avós libaneses; sou bairrista com saudades do Rio querido da minha infância. E fiquei estarrecido com a proposta do seminário.
Três das melhores universidades brasileiras estão em São Paulo e são financiadas por recursos estaduais. Meu primeiro emprego foi na Cesp, onde vi construírem as duas maiores barragens hidrelétricas do país na época (1968 e 1969), Jupiá e Ilha Solteira, financiadas por recursos fiscais do Estado. Temos as únicas estradas de rodagem decentes do país -Castello Branco, Anhanguera, Bandeirantes, Imigrantes-Anchieta, Senna-Carvalho Pinto, que substituem com vantagens as estradas-cemitério do governo federal que apenas passam por aqui.
A Fapesp é a melhor organização de apoio à pesquisa do país, financiada por recursos estaduais. O IPT e o Instituto Agronômico de Campinas são institutos estaduais de pesquisa com longa tradição de muitos sucessos. As escolas paulistas com recursos fiscais estaduais matriculam, todos os anos, 6 milhões de alunos e têm 300 mil professores. E meu bairrismo me leva longe: o Banespa é mais velho que o Banco do Brasil, o Convênio de Taubaté foi em Taubaté e a Convenção de Itu, em Itu. A República e problemas públicos do setor privado foram resolvidos aqui, em cidades paulistas com sotaque caipira.
Que enigma é esse, que crise é essa do setor público paulista? Será que é a crise da dívida de US$ 12 bilhões do Banespa, das dívidas impagáveis das estatais paulistas, do extermínio da dívida mobiliária de São Paulo em 1990?
Não há necessidade de muita reflexão para chegar à origem da crise. Ela foi criada pela política econômica que quer diminuir o tamanho do setor público, pratica taxas de juros altíssimas e impõe limites à vida financeira do governo. Uma pequena dívida virou uma grande crise do setor público, criada pela política econômica escolhida. Jogamos uma pedra na vidraça e agora vamos pesquisar por que o vidro quebrou.
O verdadeiro enigma a decifrar não é a crise do setor público paulista. Ela é filha das idéias vencedoras dos nossos tempos. O enigma indecifrável é a impassibilidade de todos os governos e de todos os analistas face à crise do querido Rio de Janeiro, pobre, violento e transformado em centro internacional de tráfico de drogas. Será que o liberalismo atual acredita que crimes, drogas, pobreza serão resolvidos pela privatização do Banerj e da Telerj?
Meu sonho seria ir a um seminário de economistas velhos como eu com especialistas da antiga Usaid, contra quem eu fazia passeatas, ativistas do Peace Corps americano, planejadores urbanos formados na França e arquitetos brasileiros, para desenharmos um megaprojeto para o Rio.
Proporíamos uma reciclagem da polícia carioca, mandando muitos policiais para estudar e treinar nas polícias francesa, americana e inglesa. Os brasileiros sabem como treinar gerações de profissionais. Essa é a história da Escola Superior de Guerra, dos agrônomos da Embrapa e da geração de economistas a que pertenço.
Os arquitetos tratariam de fazer um plano para tornar as favelas habitáveis e penetráveis pelos serviços públicos -água, energia, telefone e polícia. Os economistas desenhariam um plano de incentivo fiscal para atrair atividades econômicas para o querido Rio. Posso adiantar o resultado -sem crime, o Rio atrairia bancos, atividades culturais, empresas de alta tecnologia, atividades artísticas e turismo, inclusive de muitos paulistas.
Economistas agrícolas estudariam o reerguimento do norte fluminense, mais pobre que o Nordeste. Algum herdeiro da geopolítica do general Golbery poderia sugerir investimentos federais que abrissem o país para a costa do Pacífico, jogando o tráfico de drogas para outras estradas. Tudo com verba do governo federal digna de um megaprojeto -US$ 20 bilhões por quatro anos, sendo US$ 1 bilhão só para os projetos iniciais.
Por que esse sonho não é possível? Que idéia misteriosa nos proíbe de pensar sobre um megaprojeto para salvar o Rio? Por que é caro? US$ 20 bilhões é muito pouco para a cidade maravilhosa, bagatela comparado com os juros pagos na dívida interna só neste ano, sem citar o que gastamos com os bancos sob intervenção. Idéias antiquadas? É verdade que não há mais Usaid, nem Peace Corps, nem planejamento urbano, nem sucessores da geopolítica de Golbery, nem espaço para estas idéias.
O amor e a rivalidade dos paulistas se perdem no vazio com o Rio triste e pobre. O enigma a ser decifrado são as idéias exóticas que amarram as políticas públicas e impedem o governo de ser prático, humano e ter senso de perigo.

Texto Anterior: GM investe US$ 300 mi em fábrica na Argentina
Próximo Texto: O impacto da transposição de águas em regiões semi-áridas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.