São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 1995
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Memórias de um agente grampeador

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sou o agente Marcos, moro numa cidade-satélite e trabalho na escuta. Tenho um velho gravador chinês, uma fita de uma hora e a mosca. Sabe o que é mosca? É o gatilho que aciona o grampo.
Quer ver?
-Alô, desembargador?
-Sim.
-Aqui é a Luzia. O senhor já está no aeroporto?
-Sim, Luzia.
-É que o senhor esqueceu o polvilho antisséptico Granado.
-Tudo bem, Luzia, compro um em Vitória, assim que desembarcar.
Rodo de um lado para outro, antes de me recolher na minha modesta casa no Gama, onde ouço tudo que falam, sonhos, temores, negociatas.
-Alô, Marta?
-Olá Senador, tudo bem?
-Bem nada, tive um pesadelo essa noite.
-Coitadinho.
-Foi horrível, Marta. Discutiam um projeto sobre a próstata.
-Verdade?
-Havia centenas de pessoas na platéia e todas vestidas de branco, todas com o dedo indicador estendido, voltado contra nós.
-Ai, senador, nem me conta.
E rodo a fita, antes de entregar ao chefe. Gosto de ver sua cara de espanto, sua ilusão de que está diante de um grande escândalo:
-Você pagou aquele cara?
-Claro, meu bem.
-Mas você pagou tudo de uma vez?
-Claro, por que não?
-Não dá pra fazer isso.
-Como não dá?
-Da outra vez que paguei adiantado, ele deixou o carro sujo. Pô, meu bem, são dez reais cada lavada.
Nem sempre ouço gravadores. Gosto mesmo é de ver TV. E como falam de gravadores. Grampearam ou não o presidente? Deputados, jornalistas, gente séria, fazendo cara de fim de mudo...
Presidente - Só volto a tocar nesse assunto quando me mostrarem alguma coisa concreta.
Assessor - Como concreta, presidente?
Presidente - Alguma corrupção, recibos de banco, contas-fantasma.
Assessor - Mas, senhor presidente...
Presidente - Não tem isso de senhor presidente. Ou mostram o concreto, ou tudo fica como antes.
Assessor - Presidente, a oposição fala de um problema mais abstrato. Essa questão de transparência.
Presidente - Isso não é o caso. Quero provas concretas. Vamos mudar de crise.
Assessor - Tubo bem, presidente. Mas os boatos vão voltar...
Sou polícia, sim, mas ninguém pode me chamar de burro. As grandes conversas não se fazem pelo telefone. É o mesmo que sair por aí pedindo documentos, só se prende gente pobre e inútil.
Ouçam, por exemplo:
-Alô, meu caro, é você?
-Sim, sou eu.
-Como está aquele lance?
-Que lance?
-O lance, pô, aquele do almoço no Rio.
-Está indo. O nosso amigo está fazendo tudo. Mas há aquele nosso inimigo...
-Sim, mas ainda não entraram em acordo?
- Claro, vão acabar acertando um dia, o nosso inimigo disse que não quer melar o lance.
-Qual lance?
-O lance, aquele do almoço.
-Pois é, mas eles têm outro negócio em comum, você sabia?
-Claro, aqui se sabe de tudo, meu caro. Como se todo mundo estivesse grampeado.
Pois é. Em muitas fitas, há vestígios delas, lá no fundo.
-Meu bem, passe por aqui. O maridão viajou.
Detesto isso de chamar o outro de maridão. Perco o interesse, desgravo mesmo, sabe? Se ficar nessa linha, o que vou descobrir?
-Alô, meu bem. O maridão saiu de novo.
Se pelo menos o maridão perdesse o avião, voltaria de novo a essa conversa.
-Meu bem, estou ficando preocupada. O maridão foi a Curitiba por dois dias e até hoje não voltou.
-Como? Não é possível.
-Você não falou com ele?
-Falei uma vez. Disse que era o problema do aeroporto.
-Mas e daí?
-Daí que não o encontro mais no hotel.
-Temos de localizá-lo.
-Claro. Temos de fazer tudo.
-Esse cara vai nos dar um trabalhão. Podia já estar em casa, direitinho, preparando uma nova viagem.
-Pois é, querido. Será que nunca mais vou poder dizer: meu bem, passa aqui, o maridão viajou?
-Não vamos puxar para baixo. Pensamento positivo. Ele acaba aparecendo.
Todos querem saber mesmo é do Sivam. Pois olhem, antes que desliguem:
-Alô, Dora?
-Sim.
-Tudo bem.
-Mais ou menos. Estou cansada daquela batalha. E olhe que há muito taquígrafo e só cai pra mim essa coisa de Sivam.
-Sivam?
-É Sivam?
-Sabe que há um cabeleireiro na Asa Norte que se chama Sivam?
-Não diga.
-Sempre ligava pra ele: Sivam, dá pra fazer uma escova hoje? Aliás foi o Sivam que me fez aquele permanente do carnaval em Cabo Frio, lembra?
-Dá um tempo, Lourdes. Vamos falar de outra coisa. Não aguento mais Sivam.
-Mas ele corta bem...
-Não insiste...
Bem que gostaria de ficar aqui mexendo nas fitas, ouvindo de novo essas vozes, esses suspiros, as pausas, soluços, toda essa sinfonia que cruza os ares de Brasília. Mas agora quem vai telefonar sou eu, e peço às vezes um pouco de paciência, um pouco de privacidade. Se quiserem falar comigo, a qualquer instante, basta ligar um número, qualquer número. Dizem que o grande desespero do homem moderno é não ter ninguém para ouvi-lo.
Pois estou nessa batalha. Espero que me entendam. E perdoem.

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