São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 1995
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O santo anonimato cívico

CANDIDO MENDES

O Brasil deste fim de século vem abrindo o veio de cultura política sobre a nossa civilização da festa. Os gestos de protesto e as explosões da alegria popular ainda disputam o mesmo nervo de nosso inconsciente coletivo. O Rio é o cenário mais opulento desta desrepressão da espontaneidade, marcada pelo júbilo ou pela indignação.
A passeata-monstro do dia 28 mostrou a ambiguidade que remanesce entre os dois gestos, para chegar-se a esta marca nas ruas, do mais fundo de um genuíno sentimento coletivo. Foi a marcha ponta-de-lança de um novo querer social intervindo na realidade, ou celebração, purga do cotidiano e suas aflições, em grande espetáculo popular? Reforça-se a interrogação quando o protesto contra a violência careceu de mote básico pelo qual a multidão se transforma em seta gigantesca de um recado preciso e irresistível.
Os gestos do aprofundamento democrático entre nós devem mais às marchas que aos partidos políticos. A passeata dos 100 mil, em 68, no mesmo Rio, enfrentou a prisão e o cassetete no primeiro confronto de massa e risco contra o governo militar. O povo na praça durante a campanha das "Diretas Já" criou o telão irreversível para a chegada ao voto direto para a Presidência, estourando os cálculos da descompressão autoritária. Os desfiles gigantescos do "Fora Collor" abateram no domingo negro o presidente temerário.
E Betinho inspirou a primeira marcha da Candelária contra a violência, descida aos infernos da sociedade civil, na brutalização dos aparelhos repressores, no desrespeito das populações marginalizadas e na banalização do crime.
Os 100 mil do "Reage Rio" protagonizaram força e números muito mais dramáticos, não fosse a vergastada da chuva de verão. A procissão fez-se dos mil afluentes, dos bolsões do desespero competindo no seu desabafo. A Rio Branco tornou-se o mais democrático dos "canyons", por onde desaguaram todos os bastas à violência multiforme.
Violência, desemprego, fome e pobreza. Violência do assalto à moralidade doméstica pela televisão. Violência e desbarato das corporações pela privatização. Violência e luta pela dignidade, inclusive da própria polícia e dos camelôs. Protestos contra, até, a violência em cães e gatos. Cobrança pelos desaparecidos e pelo fracasso do aparelho público anti-sequestro. As baterias repicaram em cada esquina-chave da passeata, entre a alegria dos desfiles domingueiros e o recado retesado da hora.
Nunca registraríamos marca tão clara do povão nestes gestos. Mas a tônica de quem estava na rua foi dada pela classe média mais pobre, identificada ao fazer do "Um Milhão de Amigos", de Roberto Carlos, o quase hino da parada. E a "cidade maravilhosa" pode avultar sobre o hino nacional, neste "carioca na rua" que sabe a que foi na passeata, mas sem extrair da festa o grito.
O "Reage Rio" sobreveio à espontaneidade de uma primeira e nova resposta que levou o povo, em novembro, à vigília contra a violência do sequestro. Acionou o Disque-Denúncia e inverteu o jogo de cumplicidades coletivas com o infortúnio do outro.
A marcha logrou, no seu momento mais dramático, cobrar às autoridades a morte do sequestrado David Kogan, descoberta na véspera. No impacto desta sucessão de horrores no inconsciente coletivo, precedeu o desfile este acordar da vista de mil janelas, ou dos desvãos da miséria para a qual não há esconderijo que sobreviva aos olhos de ver.
Os sequestros se multiplicaram, confiados na apatia da sociedade quebrada entre o medo e o egoísmo; prosperaram com o mutismo das testemunhas e a certeza inexpugnável dos cativeiros espalhados na Babilônia das periferias. É uma nova carga cívica que hoje faz tilintar os telefones do Disque-Denúncia. Nela reapareceu o nervo das "Diretas Já" ou do "Fora Collor", no engenho deste anonimato da luta, brotada do fundo de nosso sentimento coletivo.
A mulher da Ilha do Governador, que denunciou o cativeiro de Marcos Chiesa, falava precisamente, dura e clara como voz de coro grego. Vinha da profundidade do anonimato ativo, que pode contagiar toda uma população, tecendo novo desfecho para o jogo das mortes ou dos resgates, deixado às polícias e às máfias do crime. O final feliz dos sequestros de 25/10 passou pela colaboração decisiva dos informantes sem face.
O sucesso da Candelária consagra este impulso dos cariocas, saído da letargia da birosca, do olho na televisão ou do desinteresse pela morte ao lado. Mas fica a pergunta: desfilou a mulher da Ilha do Governador, desfilaram as outras heroínas anônimas desta guerrilha, tão solitária quanto contagiante contra a violência? Viram a passeata como demasia ou ratificação, já, do que está em marcha e vigília, junto ao telefone, pelo nosso santo anonimato cívico?

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