São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 1995
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Entre o pecado e o crime

FÁTIMA OLIVEIRA

Debater o aborto no contexto da bioética -a ética da vida- exige que nos desnudemos de conceitos e preconceitos religiosos, bem como de atitudes misóginas, e aspiremos que a convivência em nossa sociedade esteja fundamentada em parâmetros éticos, considerando-se ética o consenso possível no interior de uma sociedade que respeita a pluralidade religiosa, ideológica e cultural, posto que ninguém detém o monopólio da verdade e nem da ética.
Taxado de atitude pecaminosa pelas religiões cristãs; proibido e imperdoável em qualquer circunstância pela Igreja Católica; só permitido legalmente em casos de estupro e risco de vida da gestante, o aborto é uma prática à qual recorrem um número incalculável de mulheres quando necessitam interromper uma gravidez que não pôde ser evitada.
A alta incidência de abortos clandestinos resulta em abortos inseguros, com taxa de morbidade estimada em cerca de 20% e mortalidade de 10%. Esse percentual de óbitos e sequelas, em quase 1,5 milhão de casos/ano, representa um enorme desrespeito pela vida, além de se configurar em grave problema de saúde pública, cuja responsabilidade cabe ao governo brasileiro.
O Brasil tem assinado, sem reservas, compromissos internacionais em defesa da melhoria do status da mulher, incluído aí a atenção à saúde. Cumprir a palavra empenhada nessa área exige, pois, que realize gestões no sentido de despenalizar o aborto e assuma a sua responsabilidade pela saúde e pela vida de suas cidadãs que, por inúmeros motivos, necessitam recorrer ao aborto para interromper uma gravidez inesperada.
Há muito sabemos que as proibições/limitações vigentes sobre o aborto no país revelaram-se impotentes para impedir que ele aconteça em larga escala e de forma insegura. De modo que é entre o pecado e o crime que as mulheres têm sido obrigadas a abortar. E digo "entre" exatamente para ressaltar que a condenação da Igreja e os poucos permissivos legais estabelecidos pelo Código Penal não constituem, na prática, impedimentos ao aborto, mas induzem à mercantilização abusiva, em geral insegura e desencadeadora de danos irreparáveis à saúde mental e física das mulheres, quando não resultam em óbitos.
A outra face do cenário da clandestinidade do aborto é que é possível e fácil realizar o aborto seguro em qualquer cidade do Brasil, desde que se possa pagar por ele. A ilegalidade de um ato médico seguro demonstra o caráter classista e injusto do acesso ao aborto seguro. Por que quem pode pagar tem direito à vida e quem não pode deve ser condenada à morte? É nesse contexto que necessitamos discutir a proposta de emenda constitucional 25/95 ao artigo 5º da Constituição, que pretende "garantir o direito à vida desde a concepção".
Se sinceramente desejamos defender a vida, precisamos entender que ninguém tem mais direito à vida do que quem já a possui em plenitude. Parece que a lei dá mais direitos ao "não nascido" (o embrião) que à nascida -a pessoa. Se a lei protegesse a pessoa, não teríamos crianças abandonadas e nem mortalidade materna decorrente do aborto. Raciocínio semelhante se aplica à Igreja, que não proíbe nem a pena de morte e nem as ditas guerras santas!
É um imperativo humanitário reconhecer que as proibições/limites ao aborto no Brasil são instrumentos mortíferos de controle público dos direitos da procriação, logo é uma exigência ética (ética não é religião!) abandoná-los, ou no mínimo repensá-los, e buscarmos outros instrumentos mais humanizados, mais éticos de defesa da vida.
Considerando-se que ético é aquilo que é o bom e o melhor para a pessoa e a humanidade em dado momento, derrubamos o mito do alegado conflito ético entre os interesses do embrião e o da gestante. Não há aqui um confronto entre "militantes" da "não vida" e "defensores" da "vida" -como alegam algumas vozes oficiais dos fundamentalismos religiosos e de outros matizes- nem entre vida "valiosa" e "não valiosa", pois é fato científico que um óvulo ou um espermatozóide possuem vida, e um embrião e um feto são seres vivos e, como tal, merecedores de todo o respeito que se possa dispensar a um ser vivo.
Também não se polemiza mais sobre qual o "exato" instante do começo da vida. A vida biológica, hoje sabemos, não começa, mas continua. No entanto o estatuto dos embriões e dos fetos não pode ser sobreposto aos direitos das pessoas, porque o conceito de pessoa, embora exija a materialidade do corpo, extrapola os limites biológicos. Outro argumento que não podemos esquecer é que a dicotomia corpo/alma -a idéia de que a alma "penetra" no corpo em algum momento- é um conceito neoplatônico sobre o qual a Igreja nunca teve uma opinião consensual, logo não estamos diante de um dogma de fé!
Quem pode ter certeza científica que desde a fecundação existe uma pessoa? Em que se baseia a Igreja quando ousa afirmar categoricamente que está comprovado pela ciência (por qual ciência?) que desde a concepção há uma pessoa?
São dados científicos que a grande maioria dos zigotos não se implantam no útero. Será que a natureza "desperdiça" tantas pessoas ao eliminar tantos zigotos?! Sabemos também que antes da nidação não existe individualização e, sem esta, não se pode afirmar que existe uma pessoa. As informações genéticas no zigoto são insuficientes para que ele passe da "potência" (depositário de informações genéticas) ao "ato" (capacidade de existir com vida autônoma), já que o desenvolvimento embrionário requer, obrigatoriamente, informações operativas exógenas.
Estamos diante de uma pretensão autoritária -e descabida em uma sociedade pluralista- de uma visão religiosa de mundo que se pretende a única verdade possível e que quer impor sua incompreensão de supervalorização do que poderá vir a ser uma pessoa, em detrimento de quem já é uma pessoa -para todas as pessoas, mesmo aquelas que não comungam de sua crença religiosa. Isso é inaceitável, pois o artigo 5º da Constituição, que assegura o direito à vida (de quem nasce vivo) é o mesmo que garante a liberdade religiosa. Estas são conquistas democráticas.
Eu, que pude optar pela maternidade, sou de opinião que esta decisão deve ser consciente, voluntária e fruto do direito à autonomia. Ou seja, uma opção e não uma fatalidade, lembrando a atualidade do ditado popular que diz "Quem pariu Mateus que o embale", já que a função social da maternidade é algo muito esquecido e desrespeitado.
Em nossa cultura não assumir a paternidade e até mesmo arrepender-se dela e "sumir" é perdoável. (Por que será que sequer se cogita excomunhão para tais casos?) Portanto, ninguém tem o direito de obrigar outra pessoa a assumir um compromisso que é para sempre em um momento em que ela não pode ou não está em condições de assumi-lo.

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