São Paulo, terça-feira, 12 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Charme e amargura

ANDRÉ LARA RESENDE

Carlos Diaz Alejandro, quando professor visitante no Departamento de Economia da PUC do Rio, me chamou atenção para os cantos de sombra da cidade. Lembravam-no da Havana de sua infância. Hoje, toda vez que vou ao Rio, observo na cidade de sol e luz os cantos escuros, encardidos pela umidade, e me lembro de minha infância, de Carlos Diaz e de tudo que se foi.
O Rio me dá calafrios de melancolia. De família mineira, nasci e cresci no Rio. Sou carioca, moro em São Paulo e sofro com o Rio. Há anos já me angustiava com seus destinos. Cidade seduzida e abandonada pela capital federal, o Rio ficou sem proposta.
Quando conheci a secretária executiva do programa de recuperação de Nova York, que tinha feito sua tese de doutorado sobre as favelas cariocas, cheguei a pensar que seria possível repetir no Rio um programa que fora aplicado com sucesso em outras cidades.
Baseado na ação coordenada de empresas privadas, o programa requer a boa vontade das autoridades. Mas, antes de mais nada, precisa de gente disposta a dedicar parte de seu tempo para um trabalho comunitário. Disposição que, hoje percebo, eu mesmo não tinha.
Não sei se o problema ficou mais difícil ou se fiquei mais cético, mas tenho pouca esperança de ver o Rio diferente. Evito, de forma proposital, usar a palavra melhor. Digo apenas diferente. O Rio de hoje, da violência, dos sequestros, da polícia corrupta, da pobreza, vem sendo gestado há muitos, muitos anos.
O intrincamento do crime com a sociedade, a camaradagem entre jovens de classe média e marginais, o vocabulário comum, o fio condutor da droga e a cultura da malandragem estão hoje na essência do ser carioca. "Aí xará, tu foge e num avisa a gente?" A pergunta do sequestrador, ao ouvir a falsa notícia da libertação do seu prisioneiro, é um misto de crueldade, humor e camaradagem essencialmente carioca.
Tenho a impressão de que o Rio é como um amigo mimado, criado por uma tia rica. Um jovem charmoso, malandro, bajulado por todos, que nunca levou nada a sério e sempre acreditou que na lábia tudo se resolve. O tempo passou, a tia se mudou para Brasília e, em crise, amargurado, se defronta com uma total falta de perspectiva. Que fazer?
Não há resposta. Não faz sentido sugerir agora que deixe de ser quem sempre foi, exigir que mude sua história da noite para o dia, que ponha terno e gravata, que se matricule num curso noturno e vá procurar emprego.
Só resta tratá-lo com carinho, aceitá-lo como é, dar tempo ao tempo e rezar para que ele se encontre. Sobretudo é preciso evitar que, tomado pela amargura e pelo ressentimento, com a idade, perca também o charme.
Sexta-feira, ou sábado, aqui mesmo nesta página, Cony citou, e aparentemente subscreveu, um artigo que sugeria que por trás dos sequestros estariam importantes nomes do sistema financeiro, interessados em captar o dinheiro dos resgates.
A tese é tão estapafúrdia que ainda não sei se é séria ou se eu estou perdendo o senso de humor. Mas se for a sério é um extraordinário exemplo de como a amargura pode levar a ver conspirações malévolas por toda parte. Não é à toa que o brizolismo fez tanto a cabeça do carioca.

Texto Anterior: Desejo colorido
Próximo Texto: RESSENTIDOS; TRADIÇÃO ROMPIDA; NO PEITO; INJUSTIÇA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.