São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995 |
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A fragilidade da falsificação
MOACYR SCLIAR
Não parecia muito Borges, pelo menos não o Borges dos tigres e dos labirintos. Mas todo escritor tem direito ao inusitado; além do que, tratava-se de um impresso, e a palavra impressa se impõe como verdadeira. Voltando a Porto Alegre comentei o assunto no jornal "Zero Hora", transcrevendo o texto. A repercussão foi extraordinária. Como acontecera em Rosario, imediatamente surgiram cópias -que eu encontrava afixadas em lugares os mais variados, casas de amigos, restaurantes, repartições públicas. Ao mesmo tempo, pessoas me escreveram de Buenos Aires, contestando a autoria de "Instantes". E o mais interessante: uma conhecida mostrou-me uma toalha de papel que havia comprado numa loja de artigos turísticos no Caribe. Ali estava o texto, desta vez sem assinatura alguma. A esta altura estava claro para mim que o nome de Borges estava sendo usado. Mas o que tinha realmente acontecido? A história só se esclareceu quando, por ocasião da entrega do prêmio Juan Rulfo a Nélida Piñon, em Guadalajara, conheci Maria Kodama. Estávamos no mesmo hotel e uma manhã, na mesa do café ela me contou -uma espécie de desabafo- a odisséia pela qual passara. "Instantes" não foi escrito por Borges e sim por uma norte-americana chamada Nadine Stair, foi publicado numa antologia da Bantam, e divulgado por Leo Buscaglia, autor de muitos livros de auto-ajuda. Em 1986 o texto apareceu em Buenos Aires numa revista tipo "New Age" intitulada "Uno Mismo". Daí chegou aos rádios, aos jornais e ao xerox. Diante da avalanche, Maria Kodama resolveu agir, recorrendo ao Ministério da Cultura argentino, sem muito êxito, por que "Instantes" já se difundira por todas as partes, e até mesmo alunos de colégio o liam. Em 1993 ela encontrou o dono da "Uno Mismo", e exigiu uma retificação, o que foi feito, mas, segundo ela, não de maneira clara, explícita. Um processo judicial deverá resolver a questão. A Maria Kodama desagrada particularmente a idéia de que Borges tivesse escrito: "Se eu pudesse viver de novo minha vida..." É uma infâmia, diz ela, supor tal desilusão por parte do escritor. Curioso é, contudo, o fascínio que o texto desperta no leitor comum, que não penetra de todo na sutileza borgiana -uma sutileza, diga-se de passagem, incompatível com a fórmula "how to" de "Instantes". Este leitor acredita que ali está uma expressão de sabedoria, e o que é mais importante, de uma sabedoria acessível a todos. Uma inusitada e derradeira manifestação de um grande escritor. Borges, a lenda, supera Borges o autor. Os leitores querem que o Jorge Luís Borges seja como aquele mapa de seu conto, um mapa que, projetado para ser perfeito, era exatamente do tamanho do país. Mas esta desmesura era também a sua fragilidade, e o mapa rasgou-se em pedaços. Como o texto, portador da inata fragilidade do falso. Texto Anterior: Paradoxos estéticos Próximo Texto: INSTANTES Índice |
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