São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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A fragilidade da falsificação

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para mim, a intrigante história começa em 1987. Naquele ano fui à cidade de Rosario, Argentina, para participar de um encontro em saúde pública. Lá pelas tantas alguém distribuiu aos participantes cópias de um texto, que eu aliás já tinha visto também em vitrines na cidade. Tratava-se de um poema, ou pelo menos estava escrito como se fosse um poema. O título era "Instantes". O autor era Jorge Luís Borges. Pelo menos era este o nome que estava ali.
Não parecia muito Borges, pelo menos não o Borges dos tigres e dos labirintos. Mas todo escritor tem direito ao inusitado; além do que, tratava-se de um impresso, e a palavra impressa se impõe como verdadeira.
Voltando a Porto Alegre comentei o assunto no jornal "Zero Hora", transcrevendo o texto. A repercussão foi extraordinária. Como acontecera em Rosario, imediatamente surgiram cópias -que eu encontrava afixadas em lugares os mais variados, casas de amigos, restaurantes, repartições públicas. Ao mesmo tempo, pessoas me escreveram de Buenos Aires, contestando a autoria de "Instantes". E o mais interessante: uma conhecida mostrou-me uma toalha de papel que havia comprado numa loja de artigos turísticos no Caribe. Ali estava o texto, desta vez sem assinatura alguma. A esta altura estava claro para mim que o nome de Borges estava sendo usado. Mas o que tinha realmente acontecido? A história só se esclareceu quando, por ocasião da entrega do prêmio Juan Rulfo a Nélida Piñon, em Guadalajara, conheci Maria Kodama. Estávamos no mesmo hotel e uma manhã, na mesa do café ela me contou -uma espécie de desabafo- a odisséia pela qual passara.
"Instantes" não foi escrito por Borges e sim por uma norte-americana chamada Nadine Stair, foi publicado numa antologia da Bantam, e divulgado por Leo Buscaglia, autor de muitos livros de auto-ajuda. Em 1986 o texto apareceu em Buenos Aires numa revista tipo "New Age" intitulada "Uno Mismo". Daí chegou aos rádios, aos jornais e ao xerox. Diante da avalanche, Maria Kodama resolveu agir, recorrendo ao Ministério da Cultura argentino, sem muito êxito, por que "Instantes" já se difundira por todas as partes, e até mesmo alunos de colégio o liam. Em 1993 ela encontrou o dono da "Uno Mismo", e exigiu uma retificação, o que foi feito, mas, segundo ela, não de maneira clara, explícita. Um processo judicial deverá resolver a questão.
A Maria Kodama desagrada particularmente a idéia de que Borges tivesse escrito: "Se eu pudesse viver de novo minha vida..." É uma infâmia, diz ela, supor tal desilusão por parte do escritor. Curioso é, contudo, o fascínio que o texto desperta no leitor comum, que não penetra de todo na sutileza borgiana -uma sutileza, diga-se de passagem, incompatível com a fórmula "how to" de "Instantes".
Este leitor acredita que ali está uma expressão de sabedoria, e o que é mais importante, de uma sabedoria acessível a todos. Uma inusitada e derradeira manifestação de um grande escritor. Borges, a lenda, supera Borges o autor. Os leitores querem que o Jorge Luís Borges seja como aquele mapa de seu conto, um mapa que, projetado para ser perfeito, era exatamente do tamanho do país. Mas esta desmesura era também a sua fragilidade, e o mapa rasgou-se em pedaços. Como o texto, portador da inata fragilidade do falso.

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