São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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Paradoxos estéticos

MASSAUD MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eça de Queirós (1845-1900) percorreu, como se sabe, três fases ao longo de sua trajetória literária. A primeira, correspondente aos folhetins reunidos nas "Prosas Bárbaras", assinala o gosto pelo romantismo fantástico de Heine, Nerval e outros. Passando ao largo da "Questão Coimbrã", Eça girava em órbita própria, como se a sua formação romântica o impedisse de esposar as idéias revolucionárias de uns e as neoclássicas, de outros. O primeiro folhetim da "Gazeta de Portugal" sai em 7 de outubro de 1866; o último, em 22 de dezembro de 1867. Pouco antes, publicava-se "Uma Carta (a Carlos Mayer)", na qual Eça oferece uma espécie de plataforma literária dessa fase de iniciação.
Girando em torno dos tempos de Coimbra, a carta a Carlos Mayer é já uma página de memórias: Eça tem apenas 22 anos, mas o passado recente começa a soar-lhe distante. E a razão pode estar na revolução silenciosa que se passava na sua intimidade. "Naqueles tempos", diz ele, "o romantismo estava nas nossas almas". E os outros? O missivista relembra que "eram dois bandos. De um lado os pagãos, os clássicos, os positivistas; do outro os bárbaros, os românticos, os místicos". O primeiro constitui quase um oxímoro: enfeixa representantes da tradição arcádica e adeptos da filosofia comteana. Aí se tem um primeiro indício da liberalidade com que o Eça desses anos, pertencente ao bando que nutria, "ocultamente, um idealismo doentio e dissolvente", manuseava os conceitos e as idéias.
O fluxo da reminiscência mostra que o seu arcabouço assenta numa específica figura retórica: o paradoxo. Não estranha, de resto, que o paradoxo constitua a viga mestra desse pensamento francamente idealista: o romantismo, é sabido, timbrava em ser a estética da ambiguidade, a cultura do paradoxo. O bando de Eça reunia "todas as teorias e todas as seitas", e os seus adeptos, "eram todos contemplativos, melancólicos e tímidos".
Em meio ao clima paradoxal, que se acentuará ao longo da carta, confirmando o quanto Eça não primava pela harmonia das idéias, subitamente a sua pena ganha ênfase e contundência. E lapida a frase-chave do seu ideário estético ao tempo das "Prosas Bárbaras": "A arte é a história da alma".
Se aqui o ideal romântico está representado e respeitado, na sequência o paradoxo volta à cena com todo o vigor. Repudiar os clássicos, porque contrários à noção da arte como a história da alma, não surpreende. O que chama a atenção é rechaçar ele aspectos da Idéia Nova, que a geração de 1865 vinha propagando com fervor revolucionário. E a razão está em que, ao ver de Eça, eventualmente ressoando a voz de Rousseau, "a arte é simplesmente a representação dos caracteres (...) abandonados à sua vontade inteligente e livre, sem as peias sociais". E, acrescenta ele, à guisa de ilustração, "aí está o que dá a Shakespeare a supremacia da arte".
Na conhecida carta a Teófilo Braga, de 12 de março de 1878, visando a defender-se de certas acusações, expõe ele o novo ponto de vista ideológico, adotado em "O Primo Basílio". Temendo que o seu interlocutor desaprovasse o romance por "separar-se, pelo assunto e pelo processo, da Arte de combate", Eça põe-se a argumentar que não atacava a família, mas, sim, "a família lisboeta, produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e, mais tarde ou mais cedo, centro de bambochata".
Com isso, Eça perfilhava claramente o ideário realista, a arte de combate e ação social. O seu alvo é a burguesinha da baixa, "sentimental, mal-educada (...), arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular, que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral etc. etc." Subindo em abstração, o ataque se dirige a toda a sociedade, erguida sobre "falsas bases", razão por quê, acreditava Eça, "O Primo Basílio" "não está inteiramente fora da arte revolucionária".
Admitindo, porém, que o romance apenas em alguma coisa pertencerá à arte revolucionária, Eça deixava aberto o flanco para o retorno do paradoxo. Tanto mais que, embora o seu destinatário não tenha posto reparo no processo, reconhece em "O Primo Basílio" "uma superabundância de detalhes, que obstruem e abafam um pouco a ação".
O realismo de Eça modela-se pelo exemplo de Balzac e Flaubert, mas por motivos diferentes: o autor de "O Primo Basílio" vacila, expõe-se às contradições. Procurando adiantar-se às restrições possíveis de Teófilo Braga faz reparos ao seu processo narrativo, sem perceber que assim oferecia argumentos para se dizer que a narrativa estava fora da arte revolucionária. Tendo em mente a nota justa, defenderia ele um realismo mais revolucionário pela linguagem que pelo assunto ou pelas intenções. Afinal, ao eleger os seus mestres, estava a propor o realismo e a recusar o naturalismo, mesmo porque ainda longe de instalar-se com fúria iconoclasta em Portugal.
Eça flutua entre extremos doutrinários; apesar disso, escorreram-lhe da pena afirmações categóricas, típicas de quem parecia convencido delas. No prefácio a "O Brasileiro Soares", de Luís de Magalhães, de 21 de maio de 1886, após classificar o romantismo português de "maneirismo sentimental", confessa a adesão ao realismo, tomado como literatura de ação, voltada para a "realidade material". Daí o elogio ao romance, por ter "a realidade bem observada e a observação bem exprimida", arrematando, como se cunhasse um axioma, que são essas "as duas qualidades supremas, as que se devem procurar antes de tudo na obra de arte".
Ora, se o realismo se manifesta nesse consórcio entre observação e expressão, não se trata do realismo que visava a transformar as instituições causadoras da decadência social. Trata-se, sim, do realismo espontâneo, tão antigo quanto a mimese aristotélica -um realismo sem tese, que apenas tem na realidade concreta o seu objeto de eleição, como o de "O Brasileiro Soares", "que vai fazer praguejar de cólera os veteranos do idealismo", -conclui Eça.
No plano das idéias estéticas, Eça está longe de ser coerente, talvez porque, nele, o estilo ocupa lugar de honra. Quando não antagônica aos princípios do realismo, como arte revolucionária, a linguagem adquire nas mãos de Eça um vigor que chega a comprometer o impacto reformador das suas narrativas: o estilo, repleto de plasticidade, cor e movimento, chama demasiado a atenção sobre si para que consiga deixar intacto o núcleo das idéias. Por isso, ficamos perplexos inicialmente ao examinar-lhe os textos doutrinários, mas logo nos advertimos que é possível antecipar o lance seguinte, em que prefacia "Aquarelas", de João Dinis (1888).
Como a se despedir do código realista, começa por declarar que "o que principalmente tem caracterizado nestes últimos 20 anos a poesia francesa (única que conhecemos em Portugal) é (...) o extremo requinte e a ciência extrema da forma". Estava aberto o caminho para o parnasianismo, esta "poética admirável". Por outro lado, se "o parnasianismo na realidade já era uma retórica", anota ele, "em Portugal foi esta coisa hedionda o calão de uma retórica".
Eça volta-se, como se vê, contra o mau parnasianismo, ou seja, contra a sua feição portuguesa e não contra a sua forma original. "Felizmente", aduz ele, notava-se "uma salutar reação, um regresso à simplicidade e ao lirismo nativo (...), com infinito alívio do bom senso e do bom gosto". Será que, de repente, Eça avançava no rumo dos ideais de 65, ele que ficara à margem da refrega? Na verdade, Eça visava à simplicidade e ao lirismo nativo, nem parnasianos, nem, muito menos, realistas simplesmente românticos.
Nessa mesma altura, em carta a Mariano Pina, de 25 de novembro de 1888, Eça já se refere ao "lusco-fusco em que se compraz o naturalismo", como a repudiar em definitivo a estética realista. Por pouco se diria que, já tendo ultrapassado a barreira dos 40 anos, sofre duma nostalgia do mundo clássico, expressa nos absolutos que as frequentes maiúsculas iniciais apontam: a utopia revolucionária, atirada para o futuro, torna-se em suas mãos, no fim dos anos 80, utopia do passado, talvez o sonho duma idade de ouro, que o mito da arcádia tão bem representara no século anterior.
Antes de ingressar na última fase da sua carreira, Eça deixaria outro sinal eloquente da ebulição que lhe agitava as idéias. Publicado em 1880, "O Mandarim" corria totalmente na contramão do realismo: o seu enredo e o seu conteúdo moviam-se no espaço do fantástico. Como se isso não bastasse como sinal de insubordinação, Eça precedeu-o mais adiante de uma carta ao redator da "Revue Universelle", de 2 de agosto de 1884.
Já no parágrafo inicial o tom heterodoxo se manifesta: depois de observar que a obra "se afasta consideravelmente da corrente moderna da nossa literatura, tornada nos últimos anos analista e experimental", afirma que a razão disso está em que ela "pertence ao sonho e não à realidade, que é inventada e não observada". Tranquilamente, Eça põe de lado o ideário realista para aderir à tendência que considera a "mais natural, mais espontânea do espírito português": o lirismo e o idealismo.
Eis porque "uma bela frase nos agradará sempre mais do que uma noção justa" e "sempre consideraremos a fantasia e a eloquência como os dois sinais mais verdadeiros do homem superior". Em suma: "Somos homens de emoção, não de razão". Assim se entende por quê, "mesmo após o naturalismo, escrevemos ainda contos fantásticos, verdadeiros, aqueles onde há fantasmas e onde se encontra no canto das páginas o diabo, o amigo diabo, este delicioso terror da nossa infância católica".
Além de decretar o fim da estética do real material, então considerada a que melhor espelhava o avanço das ciências, Eça coloca à mostra todo o paradoxo subjacente à sua doutrina. A revolução naturalista vinha da França e por isso foi imitada, lembra Eça. Mas ao olhar à sua volta, notava que uma coisa era aderir à moda naturalista "por um sentimento de dever literário", ou quase "de dever público", outra, era verificar que "o artista português, habituado às belas cavalgadas através do ideal, sufocava".
Em vários momentos, sentiu-se ele compelido ao dever literário e ao público -e proclamou-o, não sem contradições, titubeios, paradoxos. Bastava porém ouvir o que o coração lhe pedia para se inclinar no rumo da fantasia, do sonho, do lirismo, da idealização. O realismo, pregou-o à sua maneira, ou seja, com uma óptica romântica, como se houvesse assimilado mal a teoria aprendida nos autores franceses, decerto em razão de ser substancialmente mais propenso ao fantástico das "Prosas Bárbaras" do que ao objetivismo fotográfico de "O Crime do Padre Amaro".
Caso fossem necessárias outras provas para configurar a visão romântica ou, ao menos, ambígua, que Eça tinha do realismo, ou o relativo conhecimento que demonstrava nessa matéria, quando não a sua epidérmica adesão ao ideário realista -bastava socorrer-nos de um escrito de 1879, para servir de prefácio à segunda edição de "O Crime do Padre Amaro". Parcialmente aproveitado na "Nota da Segunda Edição" do romance, foi integrado nas "Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas Esquecidas".
A razão mais provável para haver utilizado escassas três páginas de um artigo de cerca de 25 páginas, seria que, procurando defender-se do plágio de que era acusado em relação a "La Faute de l'Abbé Mouret", de Zola, expunha com grande franqueza o seu diálogo equívoco com a estética realista e a Idéia Nova. Esta, supõe ela, seria "de origem portuguesa e inteiramente local", pois ignora "o que seja a Idéia Nova", bem como sabe "pouco mais ou menos o que chamam aí a escola realista".
Mais adiante chega a negar a escola realista, pois que "dizer 'escola realista' é tão grotesco como dizer 'escola republicana' ", para logo a seguir declarar enfaticamente que "o naturalismo é a forma científica que toma a arte, como a república é a forma política que toma a democracia, como o positivismo é a forma experimental que toma a filosofia". Eça contrapõe o naturalismo (e não o realismo), ao idealismo, asseverando que "o idealista (dá) uma falsificação, o naturalista, uma verificação".
À vista desse artigo póstumo, nada nos autoriza a crer que o Eça de 1879 estivesse imune ao contágio do naturalismo, mas é possível que o redigisse para justificar-se perante o público ou mesmo para convencer-se da doutrina assumida um tanto pela rama. De qualquer modo, chama-nos a atenção o fato de que ele estava a poucos meses de pingar o ponto final a "O Mandarim" (junho de 1880). Se não é nesta narrativa fantástica que se localiza o "verdadeiro" Eça, pelo menos mostra-nos até que ponto a dúvida o visitou com frequência incômoda na fase em que adotara, sem maiores conhecimentos e sem mais fundas convicções, a Idéia Nova e a "escola realista".
A última metamorfose queirosiana estampa-se sobretudo, em "A Correspondência de Fradique Mendes", que constitui uma espécie de testamento literário. Por meio de Fradique Mendes, Eça constrói o novo edifício doutrinário. O tom é memorialístico, a tentativa é de recuperar o passado desde 1867, quando pela primeira vez o herói entra na vida do narrador.
Fradique tinha acabado de publicar as "Lapidárias". Fascinado por sua originalidade, o narrador confessa que "o que nelas então me prendeu, não foi a Idéia, mas a Forma -uma forma soberba de plasticidade e de vida, que ao mesmo tempo me lembrava o verso marmóreo de Leconte de Lisle com um sangue mais quente nas veias de mármore e a nervosidade intensa de Baudelaire vibrando com mais norma e cadência". Parnasianismo, de um lado, e um satanismo pré-simbolista, "com mais norma e cadência", de outro, constituem as novidades dos poemas de Fradique Mendes. O elogio da Forma não pode ser mais ostensivo e sintomático, traindo uma certeza que não é apenas do Eça dessa época: ele padecia, em síntese, da "idolatria da Forma".
Eça faz autobiografia por meio de Fradique, transferindo para ele as dúvidas e as incertezas em relação à própria obra. A personagem morrera em 1888, ano-chave na carreira de Eça, deixando um espólio que suscita um comentário do narrador no qual não é demais enxergar a projeção das suas inquietudes. Por que teria o herói queirosiano ficado "inédito e mudo", se não porque desconfiava "de si como escritor e criador duma Prosa, que só por si própria, e separada do valor do pensamento, exercesse sobre as almas a ação inefável do absolutamente belo"?. Afinal, a Beleza continuava identificada com a Forma, embora uma forma que fosse nova.
Não sem paradoxo, o amor da forma -que jamais abandonou Eça- faz parelhas com a recuperação do fantástico, relevante na fase inicial da sua carreira. Jaime Batalha Reis testemunha-o na introdução às "Prosas Bárbaras", datada de setembro de 1903, transcrevendo palavras do seu amigo Eça, ditas no verão de 1891: "Enevoei-me, outra vez, totalmente no fantástico". Ainda que atribua a toda a geração de Antero "o gosto das viagens incertas pelos mares da Fantasia", Eça não esconde que foi ele próprio quem levou mais longe o seu culto.
Se o fradiquismo pode ser entendido como "uma desistência de agir sobre o meio e as condições sociais" (Antonio José Saraiva, "As Idéias de Eça de Queirós", 1946), também pode ser considerado o ideal de arte que sempre esteve na base da teoria e da prática queirosianas, mesmo quando ele, imbuído da necessidade de atacar a família lisboeta, o clero e a monarquia, adotou o método positivista e científico.
E como ideal de arte não oculta o seu caráter paradoxal: o paradoxo é que fundamenta as idéias de Eça, ao longo de toda a sua vida de escritor. E fundamenta-as, não por uma escolha deliberada no arsenal da retórica, mas porque ele jamais venceu as dissonâncias e as ambiguidades do seu modo de ver a realidade e de fazer arte. E se não alcançou coerência nesse terreno, acabou beneficiando a sua obra desse mesmo paradoxo: outro seria o nível da sua ficção e outro o seu relevo na literatura do século 19 se negligenciasse a Forma em favor da exatidão científica. Ou seja, se resolvesse o paradoxo em que se banhou desde o começo e de que extraiu a força motriz da sua visão do mundo.

Trechos de conferência proferida durante a Segunda Semana Internacional de Cultura Portuguesa

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