São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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Um lírico político

MARILENE FELINTO

Folha - Há ecos do espírito beat rebelde na poesia de hoje?
Ferlinghetti - Já naquela época a revista "Life" dizia que os beats eram os únicos que estavam se dando bem. Eu acho que se pode dizer o mesmo hoje, que a poesia beat é a única que está se dando bem. Pois quanto tempo faz que um escritor ou um pintor americano não faz uma declaração social ou política importante?
É por isso que sou muito ambivalente sobre essa briga de se manter os fundos do governo dos Estados Unidos para as artes, o National Endowment for the Arts (Fundo Nacional para as Artes). Acho que um grande artista precisa é de paixão. Há muitos artistas vivendo de assistência social, recebendo dinheiro do governo e, ao mesmo tempo, atacando o governo.
Acho isso hipócrita, pegar dinheiro de gente com quem você não concorda, ainda que sob o argumento de que se está usando esse dinheiro para bons propósitos.
O que há de mais expressivo acontecendo, que pode lembrar o espírito beat, talvez sejam algumas publicações novas de esquerda. Acho que está começando a surgir um movimento de resistência à revolução do computador, chamada de perturbação eletrônica. A palavra "virtual" é usada para tudo agora, é virtual isso, virtual aquilo.
Folha - O sr. é contra?
Ferlinghetti - Eu uso o computador, mas para escrever apenas, nada além disso. Essa coisa de Internet é um perigo, porque não tem quem controle a infovia. Quem é que vai controlar a infovia? Há muitos neofascistas atuando ali.
Folha - Um dos poetas que sr mais cita é Pablo Neruda, por quê?
Ferlinghetti - Eu conheci Neruda em Cuba. Ele estava em Cuba para comemorações do segundo ou do terceiro aniversário da Revolução Cubana. Ele foi convidado para falar na Câmara, onde havia milhares de fidelistas, com seus uniformes de combate e enormes charutos no boca. Era uma cena e tanto. Eu era um jovem poeta, tinha 35 anos, mas Neruda já conhecia os grandes poetas americanos. "Hawl", de Allen Ginsberg, já tinha sido publicado. Havia um ótimo suplemento literário, chamado "Lunes de Revolucion", que saía às segundas-feiras no grande jornal da revolução. Era muito bom na tradição dos bons suplementos literários que os países da América Latina têm. Então o "Lunes" publicava muita poesia beat.
O Neruda estava hospedado no Havana Libre. Subi até seu quarto, mas nós só conversamos por cerca de uma hora. Foi nessa conversa que ele me disse: "Eu adoro essa poesia abrangente americana". Não estava se referindo à minha poesia, mas sim à poesia beat em geral, que ele lera no "Lunes". Ele tinha muita afinidade com o beats. E ele me influenciou muito mais do que Walt Whitman, eu diria.

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